Violência dá o tom das eleições municipais no país, analisam especialistas
Internet influencia cenário de agressividade, e pesquisa registra mais de 450 casos de ataques contra lideranças políticas
Não é preciso estar 100% antenado na campanha para as eleições municipais para ter visto um dos episódios mais intrigantes do período eleitoral: a cadeirada que o candidato à Prefeitura de São Paulo José Luiz Datena (PSDB) deu ao em seu oponente Pablo Marçal (PRTB). O vídeo gravado durante um debate ganhou destaque nas redes sociais e, infelizmente, esse tipo de situação violenta tem se repetido em inúmeras regiões do país. Marçal, por sua vez, tem se tornado viral com discursos e declarações agressivas contra seus concorrentes desde o início da corrida eleitoral.
Dados do Observatório da Violência Política e Eleitoral, da Unirio, revelam que, de janeiro a 16 de setembro, foram registrados 455 casos de violência contra lideranças políticas no Brasil. No primeiro trimestre do ano, ocorreram 68 casos; no segundo, 155 e, no terceiro, 232 – o que demonstra a escalada de de ocorrências durante o período de campanha. Os casos citados acima são categorizados por tipos de violência: foram 94 casos de violência física, sendo 15 homicídios, 49 de violência psicológica, 19 de violência econômica e 11 simbólicas. Traçando um comparativo entre os primeiros três meses do ano e agora, o aumento percentual representa uma taxa de mais de 240%.
O cientista político Fernando Perlatto destaca que o tema da violência política não é uma novidade no cenário brasileiro. “Não podemos esquecer que nós somos um país no qual houve duas ditaduras ao longo do século XX”. Segundo Perlatto, as ditaduras deixaram legados significativos em nossa sociedade, e isso resultou em uma cultura política marcada pela violência e autoritarismo. “Essa violência é enraizada em nossa história, refletindo uma desvalorização dos direitos humanos, que ainda influencia a política atual”, acrescenta o pesquisador, que é diretor do Instituto de Ciências Humanas da UFJF.
Somado a essa herança, o cientista ainda explica que a internet, juntamente com a desinformação que circula nas mídias digitais, são fortes agravantes para aumentar as proporções desses discursos violentos. “ Hoje, há duas dimensões dentro das redes sociais que fortalecem esse cenário: a primeira é a dinâmica das bolhas, e a segunda tem relação com o engajamento”. Perlatto explica que as bolhas, onde as pessoas dialogam apenas com usuários com os quais elas compartilham afinidade política sem que haja diálogo com o contraditório, contribuem para que essas narrativas violentas se tornem ainda mais rígidas e intolerantes. “Por outro lado, existe também a dinâmica do algoritmo das redes, que engajam esse tipo de conteúdo de ofensa e violência”, acrescenta.
O especialista ressalta que os tipos de violência se manifestam de maneiras diferentes, dependendo para quem o discurso é direcionado. “Grupos que foram historicamente silenciados e oprimidos estão mais sujeitos à violência nos espaços políticos. No caso das mulheres, essa violência, embora disfarçada, aparece frequentemente em discursos machistas, sendo ainda mais evidente contra segmentos historicamente excluídos na sociedade brasileira”, destaca Perlatto.
Estereótipos de gênero contribui para ataques contra mulheres
Raphael Bispo, professor de antropologia na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do grupo de pesquisa Família, Emoções, Gênero e Sexualidades (Fegs), afirma que os estereótipos de gênero são profundamente enraizados na sociedade, e contribuem para a violência simbólica contra as mulheres na política. “Essa violência não se limita a agressões físicas, mas se manifesta na desqualificação das candidatas, na propagação de discursos que as retratam como menos competentes ou incapazes de liderar.
Quando uma mulher ocupa um cargo de destaque, frequentemente é alvo de críticas que desafiam sua legitimidade, evidenciando a crença de que o espaço político é ‘predominantemente masculino'”.
Segundo Bispo, essa desvalorização simbólica não apenas deslegitima suas vozes, mas também perpetua a ideia de que a política é um território hostilizado, dificultando a permanência e a governabilidade de mulheres eleitas e desestimulando que outras tenham desejo de pleitear uma carrreira política.
O antropólogo, por fim, acrescenta que a presença de mulheres na política é essencial para a construção de um ambiente mais plural e democrático. “É fundamental que a sociedade reconheça e desafie esses padrões prejudiciais, promovendo uma cultura política que valorize e dê voz. Apenas assim poderemos mitigar a violência simbólica e criar um espaço onde todas as pessoas, independentemente de gênero, possam participar plenamente da vida política”, conclui.
*Sob supervisão da editora Júlia Pessôa