Estilhaços contra microfascismos no novo livro de André Monteiro
Autor lança “Romance de asilo”, narrativa descontínua que desconstrói a dicotomia entre o fazer poético e o pensamento filosófico
Não espere o letrado leitor qualquer objetividade do relato que se segue. Conheço André Monteiro desde 2012, quando cursei uma disciplina isolada ministrada por ele no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em 2013, fui acolhido como seu orientando no mestrado e, posteriormente, no doutorado, e nossa relação vai além do protocolar repórter-entrevistado ou mesmo aluno-mestre: é uma transação de afetos e inquietudes e provocações mútuas e constantes.
Numa quinta-feira nada ordinária de outubro, a gente se encontrou no Bar Cascatinha para falar sobre seu novo livro “Romance de asilo” (Editora Circuito/Pano de Chão Voador, 254 páginas), que li em três dias. O referido volume será lançado ao público neste Dia de Finados, 2 de novembro, às 18h, na Casa do Edmon (que é, de fato, a residência do cantor e professor Edmon Neto, na Rua Barão de Cataguases 577), com discotecagem do Verbo in DISCOntrole, de Bruno Tuler e Edson Leão.
Pois bem. Entre uma e outra cerveja, ia alta a Lua por sobre as torres hospitalares do entorno, conversamos sobre o asilo e o livro, que resulta da pesquisa de pós-doutorado de André. Reconheci naquelas páginas muitas de nossas conversas, mas também muitos de seus posts no Facebook (ou “feicebuque”, como ele prefere grafar), plataforma que André gosta de usar como oficina.
Postagens desse ambiente banalíssimo que ele trouxe para dentro da erudição do trabalho acadêmico e literário. “Acho que o ‘feice’ é um ambiente simultaneamente negativo e positivo. Não propriamente pela ferramenta, mas pelo uso que a sociedade faz dela. Ao mesmo tempo que é o espaço do linchamento, do fim do direito à presunção de inocência, da democratização do fascismo, da banalização da poesia e do pensamento, é também o lugar da ação, do fazer político.”
Comentário
Quando foi estudar os filósofos gregos para seu pós-doutorado, André pensou inicialmente em preparar um texto mais monográfico, mas logo mudou de ideia. Optou pelo espírito do comentário, do apontamento, e assim pariu um romance em fragmentos, que o tempo todo coloca em xeque a dicotomia “filosofia x poesia”. “Eu não quis monografar o problema”, reflete.
Pop x erudito, poesia x filosofia, feice x academia, fazer x pensar… são bifurcações que André dinamita em busca de um habitar as margens, de um viver nas frestas – reparem a capa do livro, fotografia de Marcelo Correa -, de um apagar fronteiras, de um implodir pertencimentos. Mostro a André a ficha catalográfica. “1. Literatura Brasileira. 2. Conto. 3. Poesia. 4. Literatura Contemporânea. 5. Política. 6. Filosofia. 7. Teoria Literária.” Só não tem “romance” no “Romance de asilo”, observo. André ri, ainda não tinha lido o que ia ali naquele cantinho técnico de seu livro. Mas “Romance de asilo” é romance, sim, e aquilo tudo que a ficha catalográfica indica também.
Fragmentário
“Romance de asilo” é composto por 86 capítulos. Ou fragmentos. Alguns de apenas duas linhas. Na forma, remete aos romances em fatias de Machado de Assis (“Memórias póstumas de Brás Cubas”) e Oswald de Andrade (“Memórias sentimentais de João Miramar”), e além, aos pais e avós do romance, a um tempo quando o gênero ainda não havia sucumbido à ditadura do princípio-meio-fim. Há um personagem principal, o Narrador, que podemos sem dificuldade reconhecer como um alter ego do próprio André, e um outro, que é o Doutor, a quem podemos reconhecer como outro alter ego do próprio André ou como a soma de todos os questionamentos com os quais o mundo e o próprio André confrontam este Narrador. Nas sessões de terapia, alternam-se na narrativa formatos textuais diversos: resenhas, diálogos, minicontos, crônicas, contos, poemas, listas, aforismos, ensaios. O que os ata é um questionamento constante sobre os neoidentitarismos.
André deixa claro: este não é um romance sobre asilo, mas um romance de asilo, de um exílio que pode ser positivo e negativo. Este asilo – que às vezes podemos entender como o próprio ambiente acadêmico, e em outras pode ser lido como a bolha contemporânea dentro da qual cada um de nós confortavelmente, ou não tão confortavelmente assim, se instala – é, para ele, “lugar de fala e lugar de cala”. “E lugar de falha, mas também o lugar de fazer a diferença”, reflete o poeta e professor e pesquisador e músico (canta e compõe na banda Ou Sim), que persevera, ao longo dos fragmentos e mantras que se repetem ao longo da narrativa, alternando relatos dos mais íntimos e impressões das mais públicas, Nietzsche e Torquato Neto, Deleuze e Erasmo Carlos, Barthes e Jimi Hendrix, desconstruindo o que chama de “microfascismos identitários”.
Diz o Narrador: “Discursos identitários excluem os que supostamente não são: ser ou não ser. Em um ambiente identitário, só deve falar quem é. Quem não é deve calar a boca. Ou então falar com a culpa de não ser. Ovelhas negras são tão bem quistas e necessárias quanto ovelhas brancas. Há discursos identitários de direita e de esquerda. Ambos se inscrevem na linha de montagem do ‘macho, adulto, branco sempre no comando’, mesmo quando, aparentemente, se posicionam ‘radicalmente’ contra a linha de montagem do ‘macho, adulto, branco sempre no comando’. Discursos identitários são muito velhos, mas são da hora. O capitalismo de consumo é o braço direito dos discursos identitários de direita e de esquerda (os democratas estadunidenses que o digam). Com as etiquetas prontas, fica fácil fazer deslizar as mercadorias num descer redondo e macio.”
Colaborativo
Antes que encerremos nossa conversa sobre o livro e partamos para outras, André pede para não deixar de fora da reportagem um aspecto exterior ao livro, que também é interior: a colaboração de várias mãos na feitura do volume. O projeto gráfico é de Rafael Senra, parceiro de outras incursões artísticas; as fotos, de Marcelo Correa, que André conheceu primeiro pelo Facebook e depois pessoalmente, no Rio; a revisão foi feita por Edmon Neto e Sávio Damato Mendes. E há “7 Cartas (não revisadas) ao Asilo”, que André pediu a amigos que enviassem e encerram o romance: escreveram Ana Paula El-Jaick, Bárbara Simões Daibert, Daniel Paiva, Edmon Neto, Maria Schetino, Ramon Ramos e Sávio Damato Mendes. As colaborações conferem ao desfecho de “Romance de Asilo” o afago de outras vozes, simultaneamente epílogos e epígrafes. De minha parte, passo por baixo da porta o seguinte bilhete: “Meu bom camarada, fique bem aí dentro. Eles estão loucos pra te pegar na saída.”
Fragmentos de “Romance de asilo”
O asilo
Aqui dentro, como lá fora, o parto é velho. O hospital é velho. A medicina é velha. A cidade é velha. O horóscopo é velho. A família é velha (e a falta dela também). O feicebuque é velho. Nascer é velho. Mais velho que o estado da morte. Quase tão velho quanto toda uma vida pela frente.
Por outro lado, aqui dentro, como lá fora, os que nascem ouvem coisas que ninguém ouviu. Falam línguas estranhas. Destroem os brinquedos da estrela. Abrem portas no coração que ninguém abriu. Talvez aprendam a não viver como todo mundo.
* * *
Ecos de uma solitária
– Já experimentou brincar de se tornar alguém? Dói que é uma beleza.
* * *
Plano de carreira
– Sou um ignorantão, Doutor.
– E qual a sua grande meta?
– Me tornar um ignorantinho.
* * *
O ensaísta
– Você se considera um poeta?
– Não sei. Só sei que poeta é quem tem tempo pra jogar conversa fora.
– Você se considera um filósofo?
– Sou um homem comum, Doutor. Um preso político como qualquer outro. Escrevo para tentar liberdades provisórias.