Teares por todos os lados
Benjamim era resignado. Da pequenina Santo Antônio do Rio São João Acima, hoje Igaratinga, no Centro-Oeste de Minas Gerais, ele partiu, aos 13 anos, rumo ao Rio de Janeiro. Trabalhando 16 horas por dia, numa tímida firma, juntou algum dinheiro e voltou para casa. Três anos depois, novamente se despediu dos pais e foi ganhar a vida como mascate. Em seu segundo ano como vendedor, tornou-se sócio da loja, mas logo perdeu tudo por conta da crise econômica do fim do Império. Passaram-se dois anos, e já havia se restabelecido. Dali em diante, só acumularia fortunas e mais fortunas, até transformar-se num dos mais respeitados industriais do estado no início do século XX.
Passados 38 anos, três meses e 23 dias da morte de Benjamim Ferreira Guimarães, que se despediu aos 86 anos, deixando 12 filhos e 80 descendentes, entre netos e bisnetos, Sônia Maria Franco Silva conheceu um dos frutos da resignação do empreendedor. Naquele 1986, com dois filhos pequenos, a mulher iniciaria o trabalho de servente na Companhia Têxtil Ferreira Guimarães, onde passou quase 30 de seus 66 anos. “Naquele tempo, a fábrica estava a todo vapor. A gente trabalhava até aos domingos”, recorda-se ela, uma das últimas funcionárias da empresa em Juiz de Fora, demitida em 2014, quase 20 anos após o fechamento da primeira unidade fabril, em 1995.
Inaugurada em 1885, com o nome de Companhia de Fiação e Tecelagem Industrial Mineira – posteriormente controlada, em 1943, por Ferreira Guimarães, que a renomeou -, a mais longeva fábrica de tecidos de Juiz de Fora conta de uma cidade que se fortaleceu na industrialização, incitada, predominantemente, por imigrantes ingleses e alemães. O que saía dos muitos teares que se espalhavam pelo município abastecia, também, as lojas que coloriam o centro, comandadas, em sua maioria, por imigrantes sírios e libaneses. Cortando e juntando os tecidos, costureiras e alfaiates se localizavam em ponto nobre da cidade, como a Halfeld. Hoje, vivem relegados a galerias e aos consertos estabelecidos como a principal parte do ofício.
Dividida em três capítulos – o tear, o tecido e a costura -, a série de reportagens que a Tribuna inicia hoje, “História fio a fio”, apresenta a memória afetiva que liga os juiz-foranos aos tecidos, nos 166 anos que a cidade completa nesta terça-feira. Se para o escritor Murilo Mendes a cidade era “um trecho de terra cercada de pianos por todos os lados”, nas lembranças industriais era um trecho de terra cercada de teares por todos os lados.
Das peças aos retalhos
Sônia Silva conheceu uma franca produção, mas logo viu o declínio de um setor que já apontava sua decadência na cidade. Viu os teares produzindo rolos e mais rolos de tecidos, mas também amargou o descontentamento de receber, por algumas semanas, parte de seu salário em retalhos. “Quando entrei, a empresa era muito boa. Meu cunhado, que me chamou para lá, quis me levar para trabalhar na maçaroqueira (que atua no processo inicial dos fios), mas deveria ser à noite, e não pude aceitar”, conta ela, que dos cafezinhos servidos no complexo da Avenida dos Andradas foi enviada à casa da diretoria, uma espécie de hotel no Bairro Borboleta. Sônia acompanhou, então, o último grito de uma fábrica que até os anos 1900 figurava entre as de maior capital no estado, ao lado da também agigantada Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas, hoje transformada no centro cultural homônimo, na Avenida Getúlio Vargas.
Segundo o historiador e professor da Universidade Federal do Maranhão Ricardo Zimbrão Affonso de Paula, o desenvolvimento do sistema viário dos anos de 1860 em diante impulsionou a cafeicultura na região e, por consequência, fez do município um interessante centro comercial. O surto de industrialização, que se aproveitou do capital gerado pelo café expresso na criação de diferentes bancos, beneficiava-se pela mão de obra já empenhada em construções como a da rodovia União e Indústria. Contudo, não havia como driblar as forças das metrópoles. “A partir da década de 1930, a indústria juiz-forana perderá o seu mercado regional, que será disputado pelo pólo carioca e paulista, como consequência do processo de integração do mercado nacional”, avalia o pesquisador em seu trabalho “Indústria em Minas Gerais: origem e desenvolvimento”.
“Foi a indústria têxtil que desde 1868 tem acordado os mineiros do letargo em que jaziam, animando-os a novos empreendimentos, e que pela sua variada e já avultada produção tem também conseguido fixar na Província grandes capitais, que de outra sorte teriam emigrado para o estrangeiro em pagamento de fazendas que teriam de ser importadas, e é inegável que esses capitais têm fomentado a indústria e o comércio”, contava o industrial Bernardo Mascarenhas ao político capixaba Luiz Eugênio Horta Barbosa, em carta de 1887. Fundador da Companhia Mineira de Eletricidade e da Usina Hidrelétrica de Marmelos, Bernardo descobriu na água, na força hidráulica, que barateava a produção, a potência para concorrer com o mercado estrangeiro.
Um retrato na parede
Afora a Fábrica de Tecidos São João Evangelista, fundada em 1924 e ainda em atividade, restou a paisagem arquitetônica. Em sua dissertação de mestrado intitulada “Arquitetura ferroviária e industrial: o caso das cidades de São João Del-Rei e Juiz de Fora (1875-1930)”, a arquiteta Danielle Couto Moreira destaca a importância da instalação dessas fábricas para o desenvolvimento da malha urbana, seja na área central, seja na periferia. Conforme aponta no trabalho, havia uma padronização das construções industriais, como a Companhia de Fiação e Tecelagem Santa Cruz, onde desde 1991 funciona o Shopping Santa Cruz, a Bernardo Mascarenhas e a Ferreira Guimarães, todas com suas fachadas preservadas.
Tombadas pelo município, algumas das fábricas que empregaram milhares de juiz-foranos e fizeram da cidade a Manchester Mineira no século XX hoje convivem no meio urbano com a Juiz de Fora distante em muito do passado industrial. Sônia, a ex-funcionária da Ferreira Guimarães, contudo, se entristece diante das recordações. “Até de passar na frente eu fico triste. Lá era muito bom”, lamenta, para logo mostrar, no varal da casa em que mora no Bairro Dom Bosco, fronhas feitas com os tecidos do lugar onde trabalhou. “Isso daqui era tudo de lá, dos retalhos que a gente comprava por um preço mais em conta.”