O Museu FerroviƔrio de volta ao mapa de Juiz de Fora
Como um novo olhar para o Museu FerroviƔrio fez com que ele se tornasse, em apenas um ano, um dos grandes impulsionadores da cultura local
Se me convidassem hĆ” cerca de um ano para ir ao Museu FerroviĆ”rio de Juiz de Fora, minhas possĆveis respostas seriam: “esse museu existe?”, “lĆ” tem alguma coisa pra fazer?”. E falo isso sem me sentir culpada pela falta de informaĆ§Ć£o. Realmente o Museu FerroviĆ”rio, embora com seu acervo permanente e valor histĆ³rico-cultural, estava desatualizado do mapa.
A visita aos museus, de uma forma geral, tem sido um desafio. Ć sobre laƧar pessoas atravĆ©s de campanhas e tentativas de tornĆ”-los mais atrativos. Sempre foi preciso pensar o museu, nĆ£o somente agora. Primeiro, foi necessĆ”rio desconstruir a superestima atribuĆda a eles e transformĆ”-los em espaƧo de convivĆŖncia, que necessita sobretudo de ser ocupado por pessoas. Afinal de contas, as obras se completam assim, sendo vistas, despertando o outro. O segundo passo, ainda se tratando desse estigma de formalidade, silĆŖncio e afastamento, foi romper as barreiras de que arte Ć© coisa de classe privilegiada e intelectualidade. A palavra interatividade se tornou o cerne dos museus mais visitados. Depois da internet, nĆ³s adquirimos e construĆmos conhecimento de outras formas, foi preciso os museus comeƧarem a acompanhar esse novo entendimento de mundo. E isso nĆ£o quer dizer que, necessariamente, estamos falando de aparatos tecnolĆ³gicos, touch screen e realidade virtual. Talvez o terceiro passo seja justamente o de parar para observar as potencialidades do lugar, da utilizaĆ§Ć£o daquele espaƧo em outros moldes para alĆ©m dos corredores e salas com objetos de valor.
Ć exatamente isso que acontece com o Museu FerroviĆ”rio. E hĆ” um nome que merece destaque por estar promovendo esta transformaĆ§Ć£o. Desde que Luiz Fernando Priamo, conhecido como Mirabel, assumiu a direĆ§Ć£o em janeiro, ele trouxe sua bagagem histĆ³rica, como atuante no movimento punk, para repensar e propor novos formatos de evento para o local. “O meu contato com o cenĆ”rio punk, hardcore, pelo Brasil inteiro, me deu um senso de comunidade. Acho que nĆ£o tem uma pessoa que saiu ilesa tendo atuado neste momento. E quando eu promovia shows, Juiz de Fora estava em um bom momento. Era final dos anos 1990, inĆcio dos anos 2000, e bandas do Brasil inteiro queriam tocar aqui”, conta ele, ainda dizendo sobre a identidade que criavam com hambĆŗrgueres caseiros vegetarianos, os zines de literatura “Encontrare” e banquinhas de produtos das bandas.
Desde os 14 anos, escrevendo poesias para sua banda Rotten, a escrita tomou rumo em sua vida. LanƧou livro de poesia pela Lei Murilo Mendes e foi muito atuante no Eco Performances PoĆ©ticas, que, inclusive, chegou a acontecer no Museu FerroviĆ”rio mesmo antes da reestruturaĆ§Ć£o e, claro, neste ano tambĆ©m, quando o encontro comemorou seus nove anos. 2017 Ć© o ano do Museu FerroviĆ”rio. Mirabel, junto ao interesse de artistas e produtores culturais, conseguiu realizar mais de 50 eventos, incluindo show, debate com o MinC, peƧas de teatro, discotecagem vinil, encontro de colecionadores, feira de disco, palhaƧaria, matinĆŖ de carnaval, orquestra aula de zumba, principalmente querendo alcanƧar um desformato dos eventos padrƵes. As oficinas tambĆ©m foram frequentes, fortalecendo o museu como um espaƧo de formaĆ§Ć£o.
Senso de comunidade, ampliaĆ§Ć£o do local para outras pessoas e movimentaĆ§Ć£o sĆ£o filosofias que traduzem suas propostas enquanto gestor de cultura. Sua motivaĆ§Ć£o, agora, Ć© fazer com que as coisas aconteƧam, estĆ” no papel de promover, mas a cada proposta que aparece nĆ£o exita em ajudar a montar em conjunto, compartilhando um pouco de sua visĆ£o e experiĆŖncia.
Museu FerroviƔrio
Fechado essa semana para manutenĆ§Ć£o. Reabertura na prĆ³xima terƧa (2 de janeiro). Visitas de segunda a sexta-feira, das 9h Ć s 17h (Av. Brasil 2.001 – Centro)
A improbabilidade do lugar
O Museu FerroviĆ”rio Ć© uma estaĆ§Ć£o, poĆ©tico por si sĆ³, pelo carĆ”ter de passagem, dos momentos que acontecem e evaporam. “A gente tem um espaƧo que convive com o trem, mas que Ć© ocupado de forma diferente para sua finalidade. A partir do momento que uma estaĆ§Ć£o vira um museu, vocĆŖ estĆ” deslocando o funcionamento dela, e o exercĆcio constante do museu Ć© esse, de ressignificar as peƧas, o chĆ£o, e eu acho que aqui acontece isso claramente”, afirma Mirabel.
A Ć”rea externa, onde estĆ£o acontecendo boa parte da programaĆ§Ć£o nos fins de semana, era uma parte completamente improvĆ”vel. Isso me faz refletir que muitas vezes reclama-se da falta de espaƧo para escoar a produĆ§Ć£o cultural e artĆstica, no entanto, o que falta Ć© um olhar sobre as possibilidades dos espaƧos, principalmente ao se referir a um lugar central e pĆŗblico. E, claro, foi preciso ousadia, apoio e muito empenho para conseguir. A abertura para acontecer tantos eventos diferentes vem muito tambĆ©m por necessidade de divulgar o prĆ³prio museu. “Porque se formos analisar o nome ‘Museu FerroviĆ”rio’, ele nĆ£o estĆ” no imaginĆ”rio das pessoas quando vocĆŖ fala ‘museu em Juiz de Fora’, geralmente as pessoas ligam direto ao Mariano ProcĆ³pio ou ao Museu de Arte Murilo Mendes.” Mirabel estĆ” tentando pensar o museu para fora, com todas as ideias – eventos, visitaĆ§Ć£o ao acervo – coexistindo e se ajudando.
HistĆ³rico
Mirabel conta que o espaƧo, ainda com o nome de NĆŗcleo HistĆ³rico FerroviĆ”rio, foi inaugurado em 1980. Aproveitando a estaĆ§Ć£o, os ferroviĆ”rios da Rede construĆram o anfiteatro e uma das salas, onde tem acontecido aulas e ginĆ”stica diariamente. “Nessa Ć©poca, tinha alguma frequĆŖncia de festa aqui, nĆ£o nos mesmos moldes do que tem acontecido agora, mas, por exemplo, cineclube e shows eram constantes, a banda EminĆŖncia Parda jĆ” tocou aqui lĆ” no comeƧo. Existe um histĆ³rico da cultura juiz-forana que jĆ” passou por aqui.” Quando se tornou Museu FerroviĆ”rio em 2003, o espaƧo ganhou uma roupagem nova, a expografia tambĆ©m se renovou, mas a parte cultural permaneceu um pouco restrita.
Florescendo cultura
A cultura de Juiz de Fora Ć© tĆ£o rica e diversa como um matinho que nasce das frestas entre as pedras, se der uma brechinha, aquilo nĆ£o para de brotar. Parece que essa abertura de um novo lugar na cidade, como se fosse uma reinauguraĆ§Ć£o do Museu FerroviĆ”rio, claramente demonstra como essa metĆ”fora se faz verdadeira na cidade. Em meio a um condomĆnio de prĆ©dios institucionais: MRS, DNIT, Prefeitura, conhecido como Conjunto ArquitetĆ“nico Tancredo Neves, a estaĆ§Ć£o Ć© como essa fresta que deixa ventilar.
Muito sabiamente, Mirabel percebeu que nĆ£o precisaria ele mesmo produzir, essa caracterĆstica de convidar pessoas que produzem fora de um circuito jĆ” muito fechado, ou seja, pontos de resistĆŖncia, foi crucial para que alcanƧasse a abertura diversa que almeja. “Do mesmo jeito que a gente abre para a cidade, a cidade ocupa o museu, nessa eterna lei do retorno”.
Nesse primeiro ano, o diretor do museu passou estudando os limites, problemas e qualidades, foi um ano de bastante pesquisa, para ele mesmo conhecer e enxergar as potencialidades do lugar. E eu estou longe de estar em um estado confortĆ”vel, estou querendo cada vez mais”, conta Mirabel, que sai da estaĆ§Ć£o de trem e continua maquinando, o tempo inteiro em casa, suas ideias de implementaĆ§Ć£o: “80% da minha vontade no inĆcio do ano eu consegui bater e superar, sĆ³ o abraƧo que o cenĆ”rio artĆstico deu ao museu Ć© um negĆ³cio de emocionar. Estou com sensaĆ§Ć£o de missĆ£o cumprida, por todo o meu carinho por essa cidade. Nasci aqui, nĆ£o tenho a intenĆ§Ć£o de sair, mas espero que a cidade seja menos hostil, que tenha essa troca de carinho”.