Gritos de alerta
Na pele, a marca do rosto é superficial. Ainda assim, os cabelos tingidos de loiro não escondem. E a memória insiste em não esquecer. “Já vinha sofrendo preconceito há algum tempo. Até que um dia não aguentei mais e parti para a briga”, conta Rodrigo Medsan, 25 anos. “Ele era faixa preta em alguma luta. Foi uma covardia”, lembra. “Quando sofri violência na escola, minha mãe me defendeu, enquanto os pais dele ficaram envergonhados. Ela disse que sentia pena do outro menino e que se orgulhava de mim. Se pudesse escolher um filho, não escolheria outro senão eu. Isso amenizou todas as dores”, diz, trazendo das recordações uma infância edificada em medos que lhe fizeram abandonar as salas de aula e encarar o mercado de trabalho, que hoje concilia com os estudos, retomados sem temores na vida adulta.
Com lágrimas nos olhos, Matheus Vilas Boas, 20, compartilha a mesma marca profunda. Sem cicatrizes no corpo, porém. “Minha vida escolar foi muito difícil. O primeiro incidente aconteceu na segunda série, numa escola particular, e os meninos me chamavam de forma pejorativa, por eu ser magro, usar óculos e ter a voz mais fina. Sofri bastante e não tinha a quem recorrer. Na quinta série, quando fui para uma escola militar, tudo ficou ainda mais difícil. No oitavo ano, apanhei dos mais velhos que eu. Quando, no segundo ano do ensino médio, fui para a escola pública, tudo se tornou mais fácil. Consegui terminar os estudos, comecei a dançar, conheci outros gays e senti alguma aceitação”, conta.
Lado a lado, Rodrigo e Matheus, acompanhados dos amigos Wally Castro, 23, e Jhonatan Souza, 19, adentram o espaço que serviu de escola para eles. Dançarinos de MC Xuxú, 27, os quatro conhecem a Escola Municipal Santa Cândida, onde a funkeira cursou da primeira à oitava série (hoje primeiro ao nono ano), como menino. Anos mais tarde, após ter vivido no Rio de Janeiro, voltou à instituição para estudar do primeiro ao terceiro ano do ensino médio como travesti. “Na cultura, fui abraçada”, diz Xuxú, voz de um coro uníssono, que encontrou a afirmação cantando e dançando. Dos silenciamentos colegiais às expressões libertadoras da arte, os protagonistas do clipe “Um beijo” – com mais de 1,5 milhão de acessos no YouTube e pregando a tolerância com a letra que manda “um beijo pras travestis” – simbolizam as discussões da série “#QuestãodeGênero” (ver quadro na página 6), que a Tribuna inicia neste domingo. Ao longo da semana, as reportagens discutem a formação das identidades de gênero e a potência da cultura na desconstrução dos preconceitos e no enfrentamento das diversidades.
Ser visto não significa ser respeitado
“A arte é a forma mais fácil de chegar às pessoas. É muito difícil alcançar visibilidade num vídeo com depoimento. Minha forma de debater é com a música, com a dança”, defende Wally, pontuando que sua geração desfruta das conquistas de um passado não muito distante, mas ainda é tempo de hastear a bandeira. Marcas na pele e no peito ainda estão sendo feitas. De acordo com dados do Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, de janeiro de 2011 a abril deste ano, Minas Gerais se mantém como o terceiro estado em número de denúncias de violações dos direitos de pessoas LGBT no Brasil. São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente, encabeçam a lista.
Em queda desde 2012, os números chegam a 702 denúncias em 2015, sendo 51 mineiras. Destas, 22 se relacionam a discriminação, 14, a violência psicológica, sete, a violência física e quatro estão ligadas a negligência, afora quatro sobre outros tipos de violência. Contraste de um país que vê ampliar a visibilidade da comunidade LGBT nas diferentes mídias, sem inibir o preconceito que ainda prolifera nas redes e no convívio social. Ser visto não significa ser respeitado, nem inserido. “A pessoa é obrigada desde sempre a seguir condutas que generificam. Até a comida é assim, há o Kinder Ovo rosa e o azul. Precisamos debater gênero”, defende o militante João Nery, primeiro homem transgênero a passar por uma cirurgia de transexualização no país. “Não existem corpos errados, mas sociedade errada”, pontua Letícia Lanz, psicanalista, pesquisadora e militante transgênero nascida em Minas Gerais e radicada em Curitiba (PR).
“A homofobia também saiu do armário”, pontua o presidente do Movimento Gay de Minas Marco Trajano. “De tanto levar na cara, a gente aprende a dar o troco em forma de arte. Sou oprimida porque sou negra. Sou oprimida porque sou pobre. Sou oprimida porque sou vadia. Sou oprimida porque sou travesti. E por isso canto para os oprimidos. Meu aval vem deles”, brada Xuxú.
“A gente passa a vida inteira batendo na porta, e ela permanece fechada. Chega um momento em que a gente chuta e entra. A invisibilidade social que nos é imposta não nega nossa existência e nem pode enfraquecer nossa luta pelo reconhecimento dela”, diz a professora Marina Reidel, primeira mulher transgênero a conquistar o título de mestre no Brasil, concedido pela Faculdade de Educação da UFRGS. Com a exata noção do que é pertencimento, a funkeira Xuxú abre o portão da escola que é sua, em seu bairro e em sua história. “Hoje me sinto à vontade aqui. Difícil era na época em que estudava, quando não tinha argumentos para me defender e não sabia como reagir ao preconceito. Hoje sei lidar, se não responder, vou ignorar”, comenta. “Isso sou eu, não é uma escolha. Preferiria não sofrer o preconceito”, emociona-se Matheus.
“Boates acabaram, movimentos acabaram, projetos acabaram. Antes havia investimentos em formação. Hoje tudo mudou”, aponta Xuxú, para logo completar: “Depois de ‘Um beijo’, pegamos para nós uma responsabilidade muito grande. Como o movimento LGBT está fraco em Juiz de Fora, decidimos ser a militância”.
Cores de agostos passados
Em outros agostos de Juiz de Fora, o coração da cidade, Calçadão da Rua Halfeld, coloria-se diante dos olhos de mães e seus filhos, autoridades e civis, de velhos amigos e suas canecas de cerveja, que não só assistiam, mas participavam do festival de cores, identidades e visibilidade que o Miss Brasil Gay trazia anualmente. O agosto presente chega ao fim, e, ao passarmos pelo Calçadão, a imagem é acinzentada, pincelada somente pela fachada já antiga de lugares que, em outros tempos, eram cenário de celebração da diversidade. A imensa bandeira de arco-íris que tomava a Avenida Rio Branco durante a parada do orgulho LGBT foi recolhida, dando lugar a uma menor, que circulará, neste ano, pela Avenida Getúlio Vargas. E a bandeira maior, mais imponente, terá ido para o armário?
Na cidade que foi pioneira ao instituir a Lei Rosa (Lei 9.791, de 12 de maio de 2000), punitiva de “toda e qualquer manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra qualquer cidadão homossexual (masculino ou feminino) bissexual ou transgênero”, a população LGBT continua sendo atacada por violência física e moral diariamente. A realidade é reflexo do país em que uma pessoa LGBT é assassinada a cada 27 horas, conforme aponta o último relatório anual do Grupo Gay da Bahia. “Estamos voltando a um estado comum nos anos 1960, de ser normal um gay apanhar na rua”, lamenta o presidente do MGM, Marco Trajano.
“A Lei Rosa foi um marco e ajuda um pouco na tolerância, ao prever punição para a discriminação, e isso funciona bem em espaços públicos como lojas, restaurantes e outros, mas em ambientes de educação e trabalho, onde necessariamente existe uma relação de poder, as pessoas não são respeitadas e acabam evadindo, não sendo aceitas ou sofrendo experiências traumáticas”, diz Brune Coelho, primeira aluna trans do mestrado em psicologia da UFJF e integrante do grupo de apoio Visitrans, projeto de extensão do Departamento de Psicologia coordenado pela professora Juliana Perucchi, voltado para o suporte e compartilhamento de vivências.
‘Temos que ‘mendigar’ direitos’
Para a maioria da comunidade LGBT, concluir uma pós-graduação e ingressar no mercado de trabalho se enquadrando em uma das letras da sigla, como fez a professora Marina Reidel, ainda é uma realidade distante e dolorida, e é ainda pior para as pessoas trans, como a própria pesquisadora reconhece. “Culturalmente, foi dito que, para travestis e transexuais, o local de trabalho era a pista e a calçada, já que espaços como a escola e o mercado de trabalho não nos acolhia. Estamos desconstruindo isso de maneira lenta, prova disso é que hoje o número de meninas trans que presta o Enem é crescente. É uma conquista importante em um ambiente historicamente marcado pela exclusão e pela evasão”, aponta a docente.
Um dos grandes entraves, segundo Brune, é o constrangimento provocado pelo não reconhecimento do nome social dos transgêneros. “Existe uma resolução federal que assegura o direito ao uso do nome social nas instituições de ensino e que garante também o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados de acordo com a identidade de gênero de cada estudante”, explica ela. “Mas na prática, ela não é cumprida, até porque não tem peso de lei, e muitas vezes quem poderia se beneficiar da iniciativa não tem acesso à informação ou não consegue suporte legal para fazê-la valer. Temos que ‘mendigar’ esses direitos, como se fossem favores.” Para Brune, a deslegitimação desses direitos vem da concepção equivocada das identidades de gênero. “O que define uma mulher? Uma vagina? Os seios? Então não há mulheres cisgêneros com seios pequenos? E um homem? Um pênis? Barba no rosto? O direito se baseia em uma definição de gênero determinada pela biologia, e nenhum destes saberes abarca a complexidade das identidades trans.”