Um chamado para a vida, igualdade racial e de gĂȘnero
Noite de abertura da Mostra de Cinema de Tiradentes coloca em discussĂŁo a representatividade negra, faz Babu Santana se emocionar e homenageia a prĂłpria cidade, que completa 300 anos
Entro no ĂŽnibus, bem no horĂĄrio em que a tarde Ă© cortada ao meio. Minhas primeiras vezes (no “pluralĂssimo”) em Tiradentes e na Mostra de Cinema que hĂĄ 21 anos inaugura o calendĂĄrio de eventos audiovisuais no paĂs. A cidade jĂĄ nos pega pela vontade de ter olhos cada vez mais livres, e tambĂ©m capazes de fotografar a moça na soleira da janela que parece boneca e o horizonte do cĂ©u e da montanha, no fundo de uma rua de pedra com casas geminadas intercalando cores. VocĂȘ entra para a Mostra de Cinema de Tiradentes, que ao todo vai exibir 102 produçÔes do audiovisual brasileiro, com a sensação onĂrica de que vocĂȘ mesma, ao piscar, estĂĄ dentro de um grande filme. A cidade comemora seus 300 anos em 2018 fazendo e sendo cinema como um jovem de vinte e poucos anos.
Minas, histĂłria, passado, memĂłria, revisitada de forma inusitada. SĂŁo sonhos e saudades do que ainda estĂĄ por vir. A palavra “futuro” foi o grande impacto do texto de abertura escrito por Leo Gonçalves, e lido brilhantemente pela atriz e produtora cultural Grazi Medrado no primeiro momento da noite de abertura, na Ășltima sexta-feira (19), no Cine Tenda. A sala para 700 pessoas, completamente lotada, começava a ser transportada para uma reflexĂŁo sobre o que nos atravessa politicamente e existencialmente. A breve apresentação da temĂĄtica deste ano, “Chamado realista”, Ă© um alerta, um apontamento, muito mais do que a tentativa de nomear e classificar as mais recentes produçÔes cinematogrĂĄficas brasileiras. Lastros da vida “real” dos atores para surgimento dos personagens ou mesmo uma direção de atores que nĂŁo os condiciona a nada, a nĂŁo ser atuar a partir deles mesmos, sĂŁo algumas tendĂȘncias presentes nas produçÔes, que demonstram um carĂĄter quase de documentĂĄrio nas ficçÔes.
A partir da criação, que pode ser inclusive completamente inverossĂmil, os curtas e longas possuem o contraponto de se tornarem realistas no sentido de buscarem o tempo todo uma aproximação com o real, com o contexto polĂtico, com um sentimento do agora. Como se estivessem com a cabeça na lua, mas os pĂ©s no chĂŁo, expressando-se a partir dessa noção. “Um chamado para a vida, para o preconceito de gĂȘnero e racial. Sobre esse sentimento de impotĂȘncia diante da polĂtica. Um chamado para refletir, esse Ă© o chamado realista”, disse na abertura Raquel Hallak, diretora da Universo Produção, responsĂĄvel pela organização da Mostra. Diante das subjetividades em crise, a arte, nĂŁo sĂł no cinema, mas na mĂșsica, na performance, sente uma necessidade quase involuntĂĄria de se pronunciar contra a polĂtica governamental e o esmagamento que o povo, a cultura e a arte sofrem. “Deixe-nos impregnar”, dizia ela em seu discurso. A frase ecoou em minha cabeça ao longo de toda cerimĂŽnia.
A performance de MaĂœra Motta foi a chave de todas as intençÔes do evento em se manifestar politicamente. Ela, uma mulher negra, seu corpo, suas histĂłrias, seu corpo contando suas prĂłprias histĂłrias, e ao mesmo tempo a de tantas outras. Junto a isso, projeçÔes com dizeres como “a revolução Ă© feminina”, imagens de indĂgenas e mulheres negras apareciam no telĂŁo em simbiose com o que ela provocava em quem assistia. Uma das projeçÔes era a capa do disco da jamaicana Grace Jones, de 1985, intitulado: “Slave to the rhythm”. Dois violinos e um vocal como um mantra indiano, ao vivo, criavam a atmosfera sonora.
A Mostra Homenagem Ă© de pura resistĂȘncia
ApĂłs a exibição de um vĂdeo realizado pelo Canal Brasil para o ator homenageado pela mostra deste ano, Babu Santana, sua mĂŁe, seu pai e suas filhas sobem ao palco para que ele receba o trofĂ©u barroco desta edição. O chamado realista estava concretamente ali, pela voz de sua prĂłpria mĂŁe, que brevemente deixou palavras sobre a dedicação do filho para se tornar ator, ainda com as maiores dificuldades a serem encaradas quando se Ă© “negro, favelado e pobre” e quer trabalhar com arte no Brasil. Babu parecia quase desacreditado com 700 pessoas o aplaudindo de pĂ©, conseguindo tirar atĂ© mesmo lĂĄgrimas de alguns. Eu mesma me segurei.
O filme de abertura, “CafĂ© com canela” (2017), de Ary Rosa e Glenda NicĂĄcio, inaugura a Mostra Homenagem, que conta ainda com “Bandeira de retalhos” (2018), “Tim Maia” (2014) e “Uma onda no ar” (2002), todas com atuação de Babu Santana. “CafĂ© com canela” tem tudo a ver com a mensagem da abertura da mostra. Um filme que trata da representatividade negra – todos os atores e atrizes do elenco sĂŁo negros – se passa e foi filmado no RecĂŽncavo Baiano, colocando o nome desta parte do paĂs em destaque no cinema.
“Era aquela galera toda junta, nĂŁo tinha um fotĂłgrafo, um cinegrafista, um cenĂłgrafo, era uma equipe grande que envolveu a comunidade tambĂ©m, foi uma coisa revolucionĂĄria. Uma faculdade no interior do Brasil, no RecĂŽncavo Baiano, Ă© emoção pura. Eu fico muito empolgado porque onde eu passo estĂŁo falando bem do filme, entĂŁo eu penso que tinha atores maravilhosos envolvidos e a equipe era uma galera com muita garra. Aquele sangue no olho, para mim, era familiar e eu sabia que coisa boa ia sair dali”, revelou Babu em entrevista Ă Tribuna na Ășltima semana.
Minas e a indĂșstria audiovisual
A presença do presidente da Codemig, Marco AntĂŽnio Castello Branco, e sua fala na noite de abertura, foi em torno do cinema como motivação econĂŽmica para desenvolvimento e crescimento de outros setores e serviços. “Desde 2015, nĂłs temos trabalhado com muito afinco para colocar Minas Gerais no hall dos estados captadores do fomento federal da indĂșstria do audiovisual”, diz ele, anunciando o edital 2018 para financiar a produção cinematogrĂĄfica mineira, que serĂĄ aberto na quarta-feira, 24, e vai atĂ© 3 de abril.
O edital deste ano, em parceria com a Ancine, Fundo Setorial do Audiovisual e Secretaria de Estado de Cultura, vai selecionar 12 novos projetos audiovisuais, ainda incluindo o financiamento de curtas-metragens, algo inĂ©dito em outros anos, sendo trĂȘs curtas de ficção e dois de animação com recursos de atĂ© R$ 100 mil por projeto. Outra nova categoria Ă© voltada para obras cuja etapa de produção se realize inteiramente em cidades no interior de Minas Gerais. “NĂłs queremos descentralizar a produção audiovisual.”
A repórter viajou a convite da organização do festival.