Cultura paralisa na cidade, com eventos cancelados ou adiados
Sem plateias, sem produções e sem saída? Após fim de semana relativamente normal, eventos são cancelados, e determinação municipal para que grandes aglomerações sejam evitadas faz cultura paralisar na cidade e no país
Apesar do alerta nacional acerca do risco de proliferação do coronavírus no Brasil, o fim de semana em Juiz de Fora foi relativamente normal na área cultural. Eventos reuniram centenas de pessoas em casas noturnas, feiras e shows. A curta temporada de estreia do espetáculo “Hamlet”, do Sala de Giz, teve a casa lotada nas sessões de sexta a domingo, incluindo a sessão extra. No entanto, a semana começa já com cancelamentos, como o do 1º Encontro de Criadores e Articuladores Culturais, que aconteceria nesta segunda (16), n’O Andar de Baixo, com show, exibição de curtas, micropeça e intervenções poéticas. “Como trabalhamos com público e com afeto, não achamos certo seguir com a programação e colocar as pessoas em risco. Resolvemos esperar um pouco para ver como as coisas vão se desdobrar”, explica Hussan Fadel, um dos coordenadores do espaço e dramaturgo e diretor do Corpo Coletivo, companhia com sede no local. “Isso representa um grande prejuízo para nós. Ruim mesmo, afinal, todas as nossas atividades estão relacionadas ao contato com o outro. Sem gente frequentando a nossa casa, ficamos sem fonte de renda. Não realizamos oficinas, não fazemos apresentações, ficaremos apenas com o trabalho interno. Vamos ensaiar, aproveitar a necessidade de isolamento pra mergulharmos em nossos processos criativos”, comenta Fadel.
“Isso representa um grande prejuízo para nós. Ruim mesmo, afinal, todas as nossas atividades estão relacionadas ao contato com o outro. Sem gente frequentando a nossa casa, ficamos sem fonte de renda”
Na tarde desta segunda, o prefeito de Juiz de Fora Antônio Almas anunciou que eventos, culturais ou não, promovidos pela PJF estão cancelados ou adiados por tempo indeterminado. A recomendação municipal de suspensão volta-se a eventos privados, também, para mais de cem pessoas, como forma de prevenir o aumento abrupto do número de infectados na cidade. Em suas redes sociais, a Funalfa anunciou a suspensão das atividades no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (CCBM), na Biblioteca Municipal Murilo Mendes, na Casa de Leitura Delfina Fonseca Lima, no Anfiteatro João Carriço, no Museu Ferroviário de Juiz de Fora, no Centro Cultural Dnar Rocha, no Teatro Paschoal Carlos Magno, na Praça CEU e em todos os núcleos do Programa Gente em Primeiro Lugar. “A cultura existe em função do público. Fechar as portas nesse momento é oferecer a este público o cuidado necessário”, informa o órgão, em nota. Já a UFJF, anunciou no final da tarde desta segunda, a suspensão das atividades acadêmicas e administrativas. O Cine-Theatro Central, que recebeu shows na sexta e no sábado, adiou toda a sua programação, enquanto os demais órgãos culturais da universidade aguardam decisão do Conselho Superior, que deve se reunir na manhã desta terça (17).
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De acordo com Bruno Quiossa, um dos coordenadores da Sala de Giz, as aulas só funcionarão com turmas de, no máximo, 12 pessoas. “Eventos estão suspensos, pelo menos essa semana. Pode ser que suspendamos tudo na próxima semana”, aponta o ator e diretor, dizendo aguardar informações e instruções da Secretaria de Saúde local. Produtor cultural do Arteria – Fábrica de Cultura, Luan de Carvalho Rocha comenta ter tido um movimento normal no último fim de semana. Ainda assim, a casa resolveu fechar as portas. “Não sentimos impacto por causa do coronavírus, mas decidimos cancelar os eventos desta semana. A ideia é retornar na outra semana, mas vamos ver o que vai acontecer”, diz o gestor. “Para nós é uma decisão muito difícil de tomar, porque envolve a questão financeira da casa. As contas vão continuar chegando, mas, para nós, agora, é mais importante ajudar a não propagar o vírus.”
“Não sentimos impacto por causa do coronavírus, mas decidimos cancelar os eventos desta semana. A ideia é retornar na outra semana, mas vamos ver o que vai acontecer”
Se para a cultura a situação econômica já se apresentava longe da ideal, e se polêmicas envolvendo verbas públicas ajudavam a fragilizar ainda mais o setor, a epidemia parece ser uma pá de cal. “É um momento bem difícil, pois precisamos do público para movimentarmos nossas atividades. Fechar as portas é bem difícil, ainda mais financeiramente. Porém, necessário em um cenário como esse. Saúde em primeiro lugar nesse momento”, defende Quiossa. “O teatro foi o modo de consumo cultural que mais sofreu com a novas tecnologias, aplicativos de streaming, mudança de hábitos de consumo em smartphone e de relacionamento social. Agora, as casas – o resto de espaço que havia – estão fechadas. Então, nossa possibilidade de trabalho foi reduzida a zero. Termos que encontrar alternativas de sobrevivência”, discute o ator, dramaturgo e diretor Gueminho Bernardes, cuja companhia, o TQ, foi aprovada no edital de ocupação do Teatro Paschoal Carlos Magno para se apresentar na terceira semana de abril. O plano é adiar. “Ontem mesmo me antecipei e encaminhei email à direção do teatro, supondo que a data estava inviabilizada. E que aguardava instruções. Só podemos marcar nova data quando todos estiverem seguros de ir ao teatro”, afirma ele.
‘Faz parte se reinventar’
O que ficará em pé? O que resistirá? Artistas, produtores e gestores questionam longes de encontrar respostas. “O mundo foi reinventado para os youtubers”, comenta Gueminho Bernardes, um dos redatores dos vídeos de Gustavo Mendes para o serviço de streaming. “Mas o Youtube está pro teatro assim como um vídeo pornô está para a relação sexual. O mundo precisa redescobrir o valor do contato humano, real, quente. E a pandemia vai mais uma vez nos afastar. Quem sabe o resultado seja a saudade do afeto? Sentir falta do abraço e do aperto de mão?”, indaga o humorista. “Aliás, sabe por que foi inventado o aperto de mão?”, pergunta e logo responde. “Era a maneira de uma pessoa mostrar à outra que não estava armada”, conta, certo de que a cultura resistirá após a epidemia. “O que existe das antigas civilizações que já acabaram há mais de mil, 2 mil anos? A cultura. Entre elas, o teatro, que sobreviveu a tudo. Esse ciclo venenoso vai acabar e virá um novo virtuoso. Porém, nesse momento, é preciso que as autoridades forneçam instrumentos de apoio”, sugere Bernardes.
“O que existe das antigas civilizações que já acabaram há mais de mil, 2 mil anos? A cultura. Entre elas, o teatro, que sobreviveu a tudo. Esse ciclo venenoso vai acabar e virá um novo virtuoso. Porém, nesse momento, é preciso que as autoridades forneçam instrumentos de apoio.”
Para Bruno Quiossa, a realidade pode ser dura mas deve haver esperança. “Já vivíamos uma recessão de público nos últimos tempos e agora com esse período de reclusão é fato que perderemos força. Mas gosto de acreditar que tanto o cenário sem coronavírus que já era difícil, quanto o cenário atual com a propagação desse vírus são passageiros e que mesmo sob essas adversidades continuaremos fazendo”, diz. Hussan Fadel faz coro. “Estamos mais jogados à margem. E como sempre, quem está nas margens acaba sendo mais afetado. Somos autônomos, como a maior parte dos brasileiros, e como as coisas estão andando, estamos ficando sem muitas opções. Mas talvez isso mostre o impacto da arte na realidade, ou a capacidade da arte em subverter a realidade, mesmo nos contextos mais escabrosos. Somos forçados a nos reinventar em cada escolha, em cada projeto, em cada mobilização que fazemos. Acho que estamos numa situação frágil porque somos levados a viver no limite. E isso não é força de expressão”, pontua o diretor e dramaturgo. “São nesses limites que experimentamos o desconhecido. Daí fico me perguntando se daria para ser diferente. Se daria para o mundo estar se ferrando, afundado em uma das mais graves pandemias já vistas, e nós, que temos essa relação tão íntima com o mundo, saírmos incólumes. Se daria para estarmos diante da barbaridade que vem abalando o nosso país e não sermos atravessados e até provocados por isso. Acho que a arte abre sempre novos caminhos, apresenta outras realidades e diante desse mundo, como está, faz parte se reinventar, buscar novas saídas, outras realidades.”
“A arte abre sempre novos caminhos, apresenta outras realidades e diante desse mundo, como está, faz parte se reinventar, buscar novas saídas, outras realidades”
Tópicos: coronavírus