Especialista reflete sobre a arte de ser palhaço

Professora conversou com a Tribuna no Ritz Hotel
Palhaço lembra riso, que lembra graça, que lembra alegria. Entre os espectadores comuns, a conexão é imediata. Para os estudiosos do assunto, porém, os dois últimos substantivos, em seus significados mais acurados, não cabem na mesma frase – e no mesmo rosto pintado. "O clown não lida com a graça, mas com a alegria como potência de vida." Assim explica Kátia Maria Kasper, professora do setor de educação da Universidade Federal do Paraná, que esteve recentemente na cidade para participar de um evento acadêmico. Convidada por artistas locais, acabou comandando um bate-papo sobre a linguagem clownesca, seu objeto de estudo. O encontro aconteceu na segunda, no espaço Mezcla, e contou com a presença de atores e pesquisadores.
Em conversa com a Tribuna, Kátia relatou sua experiência ao lado do Lume Teatro, de Campinas. "A partir de 1995, o grupo me abriu a possibilidade de observar seu processo de trabalho durante um retiro de clown", conta, acrescentando que o mergulho a ajudou a se reinventar como professora. "Cito dois acontecimentos transformadores em minha vida. Esse e o fato de ser mãe." Ao fim da jornada, ela não sabia como levar aqueles conhecimentos para o meio acadêmico. Com o tempo, porém, vislumbrou brechas e começou a pesquisar a trajetória de inúmeros clowns. Entre eles estão o ator Luiz Carlos Vasconcelos, com seu palhaço Xuxu; o italiano Leo Bassi, um bufão que se veste de executivo e já sofreu atentado por criticar o fundamentalismo religioso; e o suíço Grock, que passou anos lapidando o mesmo número. "Como a bibliografia era escassa, fui em busca das pessoas", justifica Kátia.
Terapia
Hoje, a professora acalenta os planos de, mais dia, menos dia, assumir também um nariz vermelho. Entretanto, adverte que, ao contrário do que muitos pensam, o palhaço não é um personagem. De acordo com ela, tal linguagem trabalha com as singularidades de cada indivíduo e pode, inclusive, ser levada para o campo terapêutico. O autodescobrimento, a autoaceitação e a fuga de automatismos são algumas das portas abertas pela técnica. "Com ela, pode-se experimentar outras possibilidades de si mesmo." O ator e diretor local Marcos Marinho, que possui pesquisas na área, destaca que costuma travar consigo mesmo uma luta para não representar. "Vivo em busca das situações verdadeiras, não interpretadas."
Outro esforço comum àqueles que se dedicam ao universo clownesco refere-se ao ato de rir de si mesmo. Segundo Marinho, o palhaço prefere apontar o dedo para os próprios defeitos, respeitando suas fragilidades. "Entender isso me fez ter coragem de encarar um microfone no show ‘Marinho fica bobo e canta’." Kátia comenta que o gênero oferece abertura para a metamorfose, já que a identidade pode representar tanto afirmação quanto prisão. Marinho concorda. "Se eu cresci como o menino do pé para dentro, por exemplo, ouso descobrir que não sou só isso." E aí está a alegria citada no início do texto. "Em determinada cena do filme ‘Os palhaços’, de Federico Fellini, alguém anuncia que Augusto, o tipo mais abestalhado e inocente, morreu. Em seguida, começa a chorar e a rir do próprio choro", elucida o ator.
Arte e educação
Os estudos de Kátia revelam uma arte associada à educação dos sentidos e capaz de rever papéis. A acadêmica, que em seu mestrado refletiu sobre o corpo do aluno diante dos padrões criados e seguidos pelas escolas, pondera que qualquer processo artístico perde sua potência se for instrumentalizado. "O clown mostra sua força por estar fora da norma." Segundo o professor e bailarino Marcos Vinícius, que pesquisa as relações entre dança e educação, a função da arte é, exatamente, não ter função. "Formatada, ela perde a capacidade de vazar e transformar a partir do encontro com cada indivíduo." Vinícius acompanha um adolescente de 14 anos que não se alfabetizou, mas viu na dança contemporânea e no balé clássico outro fluxo do aprender, uma vez que seu corpo foi aberto a novas possibilidades. "Em meu trabalho, não aponto a ideia de que basta dançar para saber ler. Reflito sobre processos que podem ligar a escola formal à informal", enfatiza.