Estado de delicadeza: o trabalho artístico de Ronald Polito
Pequenas esculturas em grafite e diminutas colagens formam os “Minimundos” do artista Ronald Polito
De nada ter, tudo sugere. Único desviante numa cena aparentemente uniforme, o grafite central entre 13 outros finos objetos remete ao clássico retrato no qual o personagem sentado no meio de uma mesa com 12 outros membros carrega consigo todo o protagonismo. Homem das palavras, poeta autor de uma dezena de títulos, tradutor de importantes catalães como Joan Brossa, ensaísta celebrado em sua análise sobre Tomás Antônio Gonzaga e professor do departamento de história da Universidade Federal de Ouro Preto, Ronald Polito manipulou milhares de grafites durante a vida. Um dia, porém, ao abrir um novo tubo deparou-se com um deles torto. Homem das formas, identificou um “estado de natureza” impregnado no objeto. E preservou. “Demorei dois anos para decidir o que fazer com ele. Um dia intuí que ele era o Cristo de uma Santa Ceia. Só o Cristo é torto, por isso muito humano, além de ser Deus. O curioso é que sua presença física ao lado dos outros faz com que eles comecem a se entortar”, conta o arista, que reproduz a passagem bíblica num dos mais tocantes trabalhos de “Minimundos”, em cartaz na Galeria Poliedro do Museu de Arte Murilo Mendes. Dispostos simetricamente sobre uma pequena base de madeira, os finos bastões mais que simulam, representam e ampliam uma das cenas mais conhecidas do mundo ocidental.
Extraída em minas subterrâneas ou a céu aberto, com ou sem explosivos, a grafita serve à fabricação de tijolos, refratários, baterias alcalinas, aditivos químicos, lubrificantes, escovas, tubulações, e grafite para lápis e lapiseiras, que, por consequência, compõem os minimundos de Polito, como uma diminuta gangorra. “A fragilidade dos grafites remete, sim, a alguns temas caros à arte contemporânea: efemeridade, provisoriedade, materiais não nobres etc. Mas essa fragilidade pode guardar um paradoxo. Grafite é um mineral derivado do carbono, como o diamante”, explica o artista. “Quando crio estruturas com grafites, particularmente os cubos, eles perdem em boa medida sua fragilidade e se transformam em objetos sólidos, até resistentes. Outro sentido foi subverter seu uso corriqueiro. Em vez de material para o desenho, o croqui, passei a usar o grafite como módulo para fazer objetos tridimensionais, algo próximo da escultura e da arquitetura.” Polito, assim, retira da segunda dimensão seus desenhos, mantendo o que os criou.
Entre o caos e a precisão, os cubos de Polito, todos feitos em grafite, conformam-se ou são conformados. Enquanto alguns apresentam outros bastões em diferentes direções em seu interior, outros estão habilmente alinhados e sustentados como que por uma respiração pausada. É preciso aproximar-se para também enxergar os sutis fios de cabelos que seguram o balanço feito em grafite. “Na contramão de boa parte da arte contemporânea, que trabalha com escalas gigantescas, sempre pensei meu trabalho a partir de uma ideia de Duchamp, o ‘museu na mala’, tal como ele fez. Toda a exposição cabe em duas malas de viagem, é portátil. E solicita que o observador se desloque, se aproxime muito para ver certos elementos (como os fios de cabelo que sustentam a janela da casinha ou o banco do balanço). Os objetos impedem de serem vistos por muitas pessoas ao mesmo tempo. E, em contraste com sua aparente frieza ou ausência de subjetividade, tornam a experiência mais pessoal, íntima, subjetiva, de algum modo. É essa oscilação entre opostos que me interessa”, assevera o artista.
Pequenos desenhos para a lupa da reflexão
A fragilidade dos minimundos de Ronald Polito se seguem nos diminutos desenhos em nanquim, que discursam pela vastidão dos detalhes e pelas esculturas em papel, criando sensíveis topografias com a sobreposição de papeis em diferentes tons. Ainda integram a mostra esculturas feitas em lápis, como a caixa com os pequeninos e coloridos instrumentos, gerando volumes por suas presenças e disposições. Excessivamente delicadas, as sedas usadas para fazer cigarros, no entanto, geram os mais densos e singelos trabalhos de “Minimundos”. Queimadas suas bordas e sobrepostas umas às outras, fazem surgir novos desenhos e cores. “Há cálculo, geralmente só faço algo antevendo-o claramente. Mas há alguma margem para o acaso. Pintar papéis de seda por trás e colá-los surgiu espontaneamente, assim como queimar o papel de seda ou a seda de cigarro”, pontua o artista.
Para o professor de história da arte e crítica de arte da Universidade Estadual de Londrina Jardel Dias Cavalcanti, há uma referência nos desenhos geométricos de Paul Klee. Polito concorda. “Há bastante de construtivismo em diversos trabalhos. Mas um construtivismo claramente derruído, um Mondrian primitivista, digamos, sem a retidão de seu projeto. Já as cores não vão na direção que ele seguiu. Ao contrário, interessam-me Matisse, Bonnard, Vollard, grandes coloristas”, diz. Há, também, segundo Cavalcanti, um debate sobre construção. “Há um desejo – e, também, um prazer – quase maníaco de ordem, de equilíbrio, que se expressa na tentativa feliz de domar a matéria em sua possibilidade de oposição à tensão desse mesmo equilíbrio. Em várias dessas obras, principalmente nos objetos construídos com grafites, a noção de estrutura guarda em si mesma a noção pretérita de desabamento. São como acidentes por via de acontecer, mas que se mantêm controlados. É o milagre da arte. E só dela”, defende o professor em sua apresentação da exposição.
Dispostas lado a lado, as obras de “Minimundos”, ainda que em suportes e linguagens distintas, apontam para a coerência de uma escrita em artes visuais. O conjunto, segundo Polito, surgiu posteriormente à feitura das obras. O minimundo formado pela unidade também é outra edificação, que em muito carrega as palavras, os grafites, de seu autor. “As artes visuais estão presentes de forma intermitente em minha vida”, reconhece Ronald Polito. “Sempre tomei esses trabalhos como um divertimento, um hobbie, algo bastante pessoal. Mas me parecem evidentes as aproximações, por exemplo, com meus trabalhos em poesia: minimalismo, construtivismo (algo a ver com o concretismo), conceitualismo, mistura de registros, aparente abandono da expressão e de manifestações explícitas de subjetividade.”
MINIMUNDOS
Visitação de terça a sexta, das 9h às 18h, e aos sábados e domingos, das 12h às 18h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790 – Centro). Até 19 de maio.