Outras ideias com SebastiĆ£o Vanderlei de Andrade
O elevador nos levou atĆ© o 27Āŗ andar. Por uma escada, acessamos o terraƧo. Do alto, as pessoas parecem formiguinhas, uns prĆ©dios fazem sombras muito delineadas em outros, alguns tetos sĆ£o estranhos, e o Cine-Theatro Central nem Ć© tĆ£o bonito como sua fachada, cheia de relevos e cores. A Catedral faz gritar uma metade de esfera gigante e prata. A Rio Branco parece mais estreita do que o real, ao mesmo passo que se mostra ainda mais reta e longa. A cidade, nesse Ć¢ngulo, parece menos sufocante, com um horizonte, lĆ” longe, de montanhas. A vista, SebastiĆ£o Vanderlei de Andrade nĆ£o percebeu da mesma forma. Mas sentiu, como sente as ruas, esquinas, casas, prĆ©dios e lojas. Aos 48 anos, deficiente visual desde que nasceu, ele transita com destreza entre o emaranhado de uma urbe que o prĆ©dio onde trabalha, o Centro Empresarial Alber Ganimi, o mais alto de Juiz de Fora, observa sem se envolver como Vanderlei o faz dia apĆ³s dia.
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Aprendendo a andar
“Sou de Passa Vinte, no Sul de Minas. Meus pais moravam na roƧa. Vim para cĆ” em 1984. Viemos eu e meu irmĆ£o, que tambĆ©m tem problemas de visĆ£o. Para aprendermos as coisas em Juiz de Fora, a gente tinha mais recursos em termos de desenvolvimento e estudos. A vida na roƧa era simples, mas, dificuldades, nĆ£o passei. Uns amigos do meu pai arrumaram uma vaga para nĆ³s na AssociaĆ§Ć£o dos Cegos. Nos primeiros anos, moramos lĆ”. AtĆ© que na dĆ©cada de 1990 fomos colocando a vida no lugar. A gente queria ser independente, entĆ£o saĆmos da associaĆ§Ć£o. LĆ” eu conheci a Dra. Alice Amaral (mĆ©dica nutrĆ³loga) e vim trabalhar para ela. Foi meu primeiro emprego e atĆ© hoje nĆ£o tive outro. Sou auxiliar de serviƧos gerais e de rua. Meu irmĆ£o trabalha na Amac”, conta o filho do casal Benedita (da qual ele se despediu ainda muito jovem) e Benedito. Junto do irmĆ£o JosĆ© Valdir, 45, Vanderlei deixou para trĆ”s o pai e outros dois irmĆ£os, para, enfim, aprender a andar sozinho. “Aprendi o braile, a andar sozinho, terminei o fundamental e estou terminando o segundo grau.”
Aprendendo a pertencer
“NĆ£o vejo nada. A infĆ¢ncia nĆ£o foi difĆcil, mas valeu a pena ter vindo para cĆ””, diz o homem que, ao desembarcar em Juiz de Fora, sonhava com o dia que andaria sozinho e acabou conseguindo, atĆ© mesmo, correr. “Fizemos parte do departamento de esportes da associaĆ§Ć£o. Eu corria, mas estou parado hĆ” um tempĆ£o”, recorda-se. “Queria ter independĆŖncia”, sorri. “Moramos uns tempos no Ladeira, depois fomos para o Santa CecĆlia e agora estamos morando no Barbosa Lage, num condomĆnio residencial. Quando aposentar, quero morar aqui mesmo. NĆ£o pretendo voltar para Passa Vinte”, comenta Vanderlei, para logo valorizar os pequenos atos de uma rotina que nem sequer nos damos conta da importĆ¢ncia que tem. “Em casa, eu sei mexer com as coisas. Um cafezinho eu sei fazer, esquentar comida”, enumera. Alinhado, justifica o uso da camisa social por conta do emprego. O esmero com as vestes, coisa dele. “Pego as roupas na lavadeira, dobro ou ponho no cabide. Separo as calƧas das camisas e sei as cores do dia a dia que vou usar. Tenho camisa preta, azul, de listras, uma sĆ©rie de cores. Para comprar, peƧo as meninas para irem comigo, e elas escolhem”, conta. Sem identificar as cores, afeiƧoou-se por algumas delas: “Gosto mais de branco e das de listras.”
Aprendendo a ensinar
“Pelos lugares que passo, guardo tudo, como farmĆ”cias, padarias, mercados e bancos. Para chegar em casa, pego Ć“nibus na GetĆŗlio Vargas e guardo os pontos onde ele vai passando. Guardo os mais importantes”, diz Vanderlei, um homem para o qual a cidade nĆ£o foi projetada. E ele sabe. “Nos postes, nĆ£o vemos mais as placas em braile. A cidade, em geral, tem buracos para caramba. O passeio da Rio Branco, no jardim da Catedral, estĆ” cheio. A EspĆrito Santo tambĆ©m. Fizeram o alto-relevo na beirada do ponto. Tinham que ter feito no meio. Como vamos chegar na beirada? Como jĆ” acostumei, nĆ£o vou para o alto-relevo”, lamenta, sem vitimar-se. Muito pelo contrĆ”rio, resignado, Vanderlei ensina a enxergar por outros sentidos. Conhece a exclusĆ£o da arquitetura das ruas e a solidariedade dos que nela passam, estendendo-lhe o braƧo numa travessia ou alertando-o em algum trecho imprĆ³prio. “NĆ£o tenho nada a reclamar das pessoas. Ćs vezes costumo encontrar com a mesma pessoa mais de uma vez. E tambĆ©m nĆ£o tenho nada a reclamar da vida, tenho meu emprego, minha casa, minha vida.” SĆ³ se vĆŖ bem com o coraĆ§Ć£o…