Letramento racial: um estudo de combate ao racismo na sociedade
Letramento racial é incentivado por diferentes lideranças antirracistas
Definido como um conjunto de práticas educacionais que tem como intuito conscientizar as pessoas sobre a estrutura e o funcionamento do racismo na sociedade, o letramento racial é um conceito desenvolvido pela antropóloga afro-americana France Winddance Twine e traduzido pela psicóloga e pesquisadora Lia Vainer Schucman. A proposta é tornar os cidadãos aptos a reconhecerem, criticarem e combaterem atitudes racistas no dia a dia.
Conforme Schucman, o conceito se baseia em cinco fundamentos: o reconhecimento dos privilégios da branquitude, o entendimento de que o racismo é uma problemática atual e que as identidades raciais são aprendidas por práticas sociais, a apropriação de uma gramática e um vocabulário racial e, por fim, a capacidade de interpretar códigos e ações racializadas. Dessa maneira, o assunto segue como tema de debate público e relevância social.
Em Juiz de Fora, a psicóloga Lauren Aryane relata momentos que influenciaram a sua trajetória como mulher negra e ativa na disseminação do letramento racial. Ela atua no Movimento Negro Unificado (MNU), na Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso), no coletivo Mulheres Afrocentradas em Movimento, no projeto Futuro Re2ondo e no grupo mineiro artístico cultural de percussão Muvuka.
“Sob uma lógica utópica, pensei que seria mais uma aluna que iria cursar psicologia, mas desde o primeiro momento que pisei na sala e vi apenas uma mulher negra sentada na primeira cadeira, hoje minha amiga e companheira de luta, eu me dei conta do que poderia enfrentar. Eu era constantemente solicitada para representar as pautas raciais em debates dentro de sala, eventos, dentre outros, mas que se voltavam apenas para o racismo. Imaginei que essa seria a minha especialidade”, relembra.
Assim, ela explica que a compreensão sobre “lugar de fala”, muitas vezes, é uma justificativa vazia para a branquitude se isentar de sua responsabilidade e continuar gozando de seus privilégios. Lauren percebe que os espaços que não priorizam essa pauta não estão dispostos a questionarem suas regalias, pois estão fadados a fracassar, ou seja, de serem desprotegidos pelo pacto narcísico.

“O letramento racial é uma ferramenta de prevenção e combate, um processo educativo, e não pode ser lido de forma leviana, como se fosse um passo a passo. Ele está preocupado com a inserção de suas pautas, mas que tenham como base a criticidade necessária, se não, acaba virando um evento anual com selo de desconstrução. Ele movimenta e direciona o peso desses estigmas para a branquitude, sendo ela ‘desconstruída ou não’ para resolver o que criaram. É muito fácil ‘cometer um erro’ e depois pedir a uma pessoa negra para representar o seu processo de mudança”, afirma.
Na avaliação de Lauren, as experiências em movimentos e coletivos trazem alívio e revolta, numa espécie de via de mão dupla, que são considerados por ela “efeitos básicos de construir consciência”. Também oportunizam acolhimento por ser partilhado em comunidade, o que garante amparo. “A minha percepção crítica foi ampliada quando comecei a perceber os lugares que eu pertenci em minha vida e que me espremia atoa para caber. Eu sempre soube que era negra, mas não dizia isso em alto e bom tom. Sempre fui ensinada dentro de casa sobre como me portar, me proteger, sobre como iria vencer na vida, mas isso também me afastou do entendimento do que era minha potência e que muito do que vivia se deparava pela boca de outras pessoas – uma subjetividade coletiva”, define.
“Precisamos retomar sobre o que contam os livros de história, escutar nossas crianças e não banalizar suas dores. Essa visão individualista e meritocrática dá a entender que todos temos as mesmas oportunidades, basta querer, mas se o desejo tivesse como consequência o diploma, as periferias seriam a faculdade da cidade”, finaliza.
Combate ao racismo deve ser articulado
Diretor do MNU e presidente do Conselho Municipal para Promoção da Igualdade Racial, Paulo Azarias tem uma longa trajetória na luta contra o racismo, tendo atuado também no jornal Unibairro e na comissão de combate ao racismo da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Para ele, os desafios na construção do letramento racial “são imensos”, sendo “essencial investir na educação”.
Ele cita como exemplo o trabalho realizado pelo programa”Semente de Ogum”, cursinho preparatório para o Enem que incentiva a juventude negra a ir para as universidades. “A mensagem que deixo para essa juventude é primeiro estudar, procurar conhecer a sua ancestralidade e o seu passado”, destaca. “É importante a participação e mobilização da juventude negra na luta por direitos e conquistas, que são muitas para vir, mas vai depender muito de uma participação consciente, com o intuito de minimizar os efeitos do racismo.”

Também menciona que “a autonomia e a autossustentação são fundamentais”, destacando a atuação da Feira de Etno Desenvolvimento, uma atividade mensal realizada na cidade que reúne produtos produzidos em terreiros, em sua maioria, por mulheres negras.
Outras iniciativas são citadas por ele, como o Feijão de Ogun, que completou 22 anos de atuação este ano, e o 1° Fórum Cultural Inter-religioso em Juiz de Fora, idealizado pelo o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), que será realizado no dias 13 de setembro. Para ele, os eventos causam impactos diretos no combate ao racismo religioso, pois trazem à tona a diversidade da cultura negra e abre espaço para transformar os debates em políticas públicas como foi o Estatuto da Igualdade Racial, discutido em edição do Feijão Ogun e, posteriormente, aprovado pela Câmara e sancionado pela Prefeitura.
Paulo também aponta a criação da Secretaria Especial da Igualdade Racial como um avanço, já que, a partir dela, “é possível articular ações antirracistas com todos os órgãos municipais, com o intuito de promover uma reflexão sobre a necessidade de se acabar com esse mal que acomete a sociedade”.
Ele ressalta que a atuação de combate ao racismo não pode ser local, mas sim, articulada com as lutas gerais. “A gente tem observado, principalmente com relação à polícia, uma dificuldade de caracterizar nos boletins de ocorrência o racismo ou a injúria racial. Isso ocorre à medida que a injúria racial foi igualada ao crime de racismo, portanto, a sua pena ficou mais rigorosa, e a dificuldade das vítimas em registrar um boletim de ocorrência aumentou muito. Então, isso prova o quanto esse processo de disfarçar o racismo é muito poderoso e dificulta que esses crimes sejam denunciados”, analisa.
“Na realidade, o problema não é local, porque para estabelecer essa delegacia de combate ao racismo, intolerância religiosa e discriminação, isso tem que ser uma determinação do Estado, que até hoje não tem nenhum movimento nesse sentido. A resistência é naturalmente com relação ao racismo institucional, que ele provoca por parte do Estado, dos vários órgãos, um processo de continuação desse preconceito.”
Atuação dos terreiros na luta antirracista
Os terreiros, espaços onde são realizados rituais e cultos de religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, possibilitam a visão de narrativas e vivências por meio da ancestralidade, de acordo com Lauren. O Terreiro Filhos de Pemba realiza, neste sábado (6), às 14h, a 2ª edição do Akofena: letramento racial crítico. O evento será realizado no Bairro Fábrica, na Zona Norte da Cidade e busca introduzir elementos centrais para o debate e o engajamento com o tema da luta antirracista, conforme os organizadores.

A formação, ministrada pelo professor Diego Dhermani, tem o objetivo de oferecer e fortalecer a leitura e postura crítica dos sujeitos e comunidades diante das relações étnico-raciais brasileiras, através do diálogo sobre as noções, os conceitos e os temas do debate étnico-racial, conforme a organização. Por meio de ingresso adquirido via formulário, os alunos poderão conhecer sobre o racismo estrutural, com referências históricas e exemplos da influência bantu, iorubana e indígena na formação do Brasil.
*Estagiária sob supervisão da editora Gracielle Nocelli
Serviço
2ª edição do Akofena: letramento racial crítico
Horário: 14h
Local: Terreiro Filhos de Pemba (Rua Bernardo Mascarenhas, 829 – Fábrica)
Data: 6 de setembro (sábado)
Ingressos por meio do formulário de inscrição