‘O desapego norteia a vida de Mujica’


Por MARISA LOURES

04/07/2015 às 07h00

Marcos André Lessa lança o livro

Marcos André Lessa lança o livro “Mujica: O presidente mais rico do mundo” (Divulgação)

A visão do rosto de um velho já exibindo o olhar cansado, bigodinho e cabeça pendida para o lado em várias partes do Rio de Janeiro despertou no carioca Marcos André Lessa a curiosidade por se debruçar na trajetória do ex-guerrilheiro que chegou ao cargo máximo do Uruguai aos 75 anos. Em “Mujica: O presidente mais rico do mundo” (5W, 223 páginas), o jornalista traça a biografia de José Alberto Mujica Cordano, o líder que legalizou a maconha, o aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo. Contudo, não só a trajetória política mereceu atenção do autor.

“À medida que o estilo de vida dele foi sendo revelado, comecei a admirar – de certa forma me identificar em algumas coisas – a conduta dele, a visão autocrítica que ele tinha sobre a esquerda e sobre a própria classe política. Um certo desapego que, muitas vezes, a gente não via na classe política em geral. Eu não estava vendo aquele estêncil no Uruguai, estava vendo no Brasil. O estêncil foi mais um momento em que o Mujica me chamou atenção. O cara chegou ao ponto de ser referência de estilo de vida para as pessoas”, afirma Marcos, que é o convidado do “Sala de leitura”, transmitido neste sábado, às 10h30, na Rádio CBN Juiz de Fora. A reprise acontece na segunda-feira, às 14h30. “Outra coisa que me chamou atenção é que, além da Dilma, um outro presidente tinha sido guerrilheiro contra a ditadura do seu país.”

Tribuna – Você se surpreende com o fato de uma pessoa simples e já de idade, como Pepe Mujica, ser capaz de tomar decisões tão liberais, como legalizar a maconha?

Marcos André Lessa – Tem parte de uma entrevista dele, no livro, em que ele diz uma frase muito interessante. “O lamentável é que um velho de 80 anos tem que chamar atenção de um mundo conservador que nos faz chorar.” Isso é bem emblemático mesmo. A questão é que a gente precisa entender também que essas bandeiras são muito da Frente Ampla, que é a coligação de esquerda que elegeu Mujica e que elegeu Tabaré Vásquez. Na verdade, quando Mujica chega ao poder, ele simplesmente sanciona essas leis que a Frente Ampla aprova, enquanto que Tabaré Vásquez, um médico conservador, vetou um dos artigos de uma lei que já descriminalizava o aborto. Creio que o que explica o Mujica, nessa idade, ter esse tipo de atitude tem muito a ver com seu desapego em relação a posições estanques. Depois de tudo que ele passou, tendo sido preso, tendo ficado numa cisterna, numa solitária improvisada dois anos, ele diz que isso contribuiu muito para o estilo de vida dele, para que se desapegasse das coisas materiais, não de uma maneira espiritual, franciscana. Acho que esse desapego geral o norteia: Por que preciso me apegar ao jeito de sempre de combater o tráfico? Por que não posso tentar novas coisas? Por que preciso manter a tradição de só as pessoas heterossexuais poderem se casar se outras pessoas têm outros tipos de relacionamento e poderiam ter essa oportunidade também? Por que preciso continuar mantendo muitas mulheres à margem da lei?

– A impressão é a de que você buscou humanizar a figura desse líder político o tempo todo.

– Quando vi o Mujica, pensei: Por que essa pessoa pensa e age desse jeito? Minha vontade era contar essa trajetória de frente para trás. Não acredito que eu tenha tido essa intenção de humanizá-lo, ele mesmo se coloca nesse lugar. Mesmo quando ele é elogiado, colocado como referência, ele se coloca como mais um da humanidade. Em determinados momentos, procurei correr atrás de fazer uma certa crítica a ele, o que, em geral, você não vê. São tantos elogios, é tanta gente reconhecendo todas as suas vantagens e qualidades. Fui com uma expectativa de querer descobrir quem é essa pessoa e de descobrir coisas que eu não conhecia.

– É uma biografia autorizada?

– Não é autorizada. Quando a escrevi, estava no meio dessa discussão da questão das biografias, mas existem dois fatores que acabam sendo uma vantagem: O Mujica não é brasileiro. Se fosse um cidadão brasileiro que tivesse em território brasileiro, talvez, você pudesse ter um questionamento legal, mas a própria postura dele não leva a isso. Já foram publicados outros livros sem sua autorização. Acho que só um o acompanhou no mandato, mas também foi só uma permissão para acompanhar. Outro fator é que ele deu muitas entrevistas. Você não vê nele mesquinharia, nenhuma decisão por reter algo ou controlar.

– Você chegou a conversar com o Mujica?

– Não consegui. Vi mais de cem entrevistas do Mujica, li vários livros sobre a realidade uruguaia e sobre a campanha presidencial dele, cheguei a mandar um e-mail para a embaixada, mas, no fim, já no último ano, ele estava com muitas entrevistas de toda parte do mundo. Tentei compensar isso vendo, também, bastante análise não só brasileira, mas de outros países, sobre ele, o governo dele, o Uruguai.

– Qual sua opinião sobre o fim das biografias autorizadas?

– Antes de pensar como escritor, penso como leitor e cidadão. A gente precisa deixar que a livre circulação de ideias aconteça, que as pessoas possam estar informadas, e essa é uma maneira até madura de lidar com a questão. Como autor, é claro que é uma experiência diferente e acaba sendo um incentivo para fazer mais biografias. As próprias editoras vão ficar mais à vontade, os próprios autores vão ficar mais tranquilos de investir tempo, dinheiro e até um pouco de sua vida pessoal num projeto que eles julgam importante de ser trazido para a sociedade. À medida que se permitir a livre circulação de ideias, acredito que a sociedade vai poder também julgar o que é responsável ou não, o que procede ou não, e as pessoas públicas também vão conviver com essa possibilidade. É um processo muito mais complexo do que simplesmente dizer “esse livro pode ou não pode ser publicado”. É muito rico. No momento em que você impede essa circulação, prejudica essa riqueza.

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