Retalhos de vidas


Por MAURO MORAIS

01/11/2015 às 07h00- Atualizada 02/11/2015 às 14h44

Museólogo José Augusto de Paula Pinto mostra Muquifoca, projeto itinerante de museu em favela de Belo Horizonte

Museólogo José Augusto de Paula Pinto mostra Muquifoca, projeto itinerante de museu em favela de Belo Horizonte

Maria de Lourdes, a Lurdinha, nasceu em uma comunidade pobre no Vale do Jequitinhonha, no Nordeste de Minas. Até os 7 anos, nunca havia ganhado uma boneca sequer. Até que pediu à mãe e à tia uma para brincar. Ganhou um fuso para aprender a fiar e, assim, confeccionar sua própria boneca. Continuou não tendo. Morando em Belo Horizonte, já mais velha e com duas filhas, ela passou na frente de um brechó, viu duas bonecas de pano e comprou, pensando que as meninas não mereciam passar pela mesma privação. Maria de Lourdes nunca conseguiu entregar o presente. As filhas brincavam, mas a mãe continuou sendo a dona. Ainda hoje, passados três anos desde que emprestou as peças para o Muquifu – Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, mantém a posse do brinquedo tardio, que conta não apenas sua história de vida, mas as vidas que a rodeiam no Morro do Papagaio, em Belo Horizonte.

Emocionante, o memorial que se estabelece no museu comunitário da capital mineira é uma das muitas práticas que se proliferam, de maneira independente, em todo o país, valorizando a trajetória de anônimos e, por consequência, a narrativa coletiva que se estabelece às margens da história oficial. Segundo o coordenador do Muquifu, o museólogo José Augusto de Paula Pinto, a vivência de Maria de Lourdes ajuda a compreender a origem de muitos dos quase 40 mil habitantes do conjunto de favelas denominado, institucionalmente, como Aglomerado Santa Lúcia. “Nessa cidade que ela nasceu, Minas Novas, era comum aos homens saírem para trabalhar em canaviais de São Paulo, deixando as mulheres sozinhas. Elas se auto-intitulavam como ‘viúvas vivas’ e acostumaram-se a tecer para sobreviver. Muitas dessas famílias foram para Belo Horizonte, principalmente para o Papagaio”, conta.

Em Fortaleza, no Ceará, bonecas de pano também dão conta de narrar a realidade da empobrecida comunidade do Pici. “Pedagoga por formação e artesã de coração”, Liduína Rodrigues criou, em 2009, o Museu da Boneca de Pano. “No bairro, funcionou a antiga base aérea de Fortaleza. Pici vem de PC (lido em inglês), Primeiro Comando. A área ficou desocupada de 1945 a 1990, quando as pessoas começaram a chegar. Fui para lá em 1991. Sou uma das que participaram da ocupação e sempre estive envolvida com a história da comunidade, que é predominantemente composta pela classe C. Comecei com um pequeno acervo meu e, com a divulgação e ajuda dos amigos, hoje temos bonecas de pano do mundo. A cultura do globo está ali, em retalhos de vidas de muitas pessoas”, emociona-se ela, funcionária pública municipal. Como é pensar num museu que não tem a nobreza, quadros de artistas famosos? “Temos a nossa história, que é tão importante quanto o quadro do imperador ou de qualquer outro nobre”, diz Liduína, enfática.

Moradora de ocupação em Fortaleza, Liduína Rodrigues fundou Museu da Boneca de Pano

Moradora de ocupação em Fortaleza, Liduína Rodrigues fundou Museu da Boneca de Pano

Grandiosidade no afeto

Entre malas, retratos, documentos como carteiras profissionais, atas, livros de contas, diários, entre outros objetos pessoais, o historiador Roberto Dilly foi recompondo a trajetória da própria família. As raízes que se fixaram em Juiz de Fora partiram de navio da Áustria e passaram por tormentas na terra e na água. Ao perceber que aquela não era apenas a sua história, mas a de muitas famílias que escolheram a cidade como porto, ele decidiu criar o Instituto Teuto-Brasileiro William Dilly, que integra o complexo do prédio do Museu de Crédito Real, na esquina da Avenida Getúlio Vargas com a Rua Halfeld. “Muitas dessas famílias nunca tinham visto o mar, de repente entraram numa barca e passaram mais de 80 dias em barcos, vendo o mar invadindo, crianças morrendo, corpos sendo sepultados nas águas. Essa narrativa é muito rica, porque mostra a força que esses imigrantes alemães e austríacos tiveram para se reerguer em outro lugar. Normalmente a história oficial se prende a grandes feitos, grandes legados, às grandiosidades públicas, mas essas sagas íntimas não podem ser esquecidas”, pontua.

Das muitas e heroicas trajetórias, destaca-se a do professor alemão Hermann Mathias Görgen, opositor ferrenho do nazismo, que precisou sair de seu país e escolheu Juiz de Fora, onde construiu uma fábrica de manufaturados para trazer 48 judeus e perseguidos políticos. Em “Os refugiados de Görgen”, livro que Dilly prepara junto à jornalista Rita Couto, a bravura e a coragem do homem ilustram o terror vivido não apenas na Alemanha de Hitler, mas também em território tropical.

“Muitas famílias de imigrantes foram presas, o que as fizeram destruir documentos durante a guerra. Muitos enterraram, esconderam, e, passada a guerra, trouxeram à tona”, cita, mostrando alguns desses registros. “A história familiar não pode ficar apenas no registro da oralidade, que é muito importante, mas precisa ser documentada. O futuro depende disso. Neles, está a história mais exata, que deveria ser estimulada”, defende.

Incomodado com os tratores e com a ganância da especulação imobiliária que começaram a mudar a paisagem do Morro do Papagaio, no qual é pároco há 16 anos, o Padre Mauro Luiz da Silva propôs a criação do Muquifu justamente para que não sejam destruídas, além das casas da favela, as vivências que ali existiram. “Nossa vocação é garantir o reconhecimento e a salvaguarda das favelas, os verdadeiros quilombos urbanos do Brasil: lugares não apenas de sofrimento e de privações, mas, também, de memória coletiva digna de ser cuidada”, sustenta o religioso. “Em uma dessas cinco vilas, que praticamente não existe, há um projeto da Prefeitura, o Vila Viva, que vai demolindo as casas e construindo prédios para os moradores. Ninguém pensou em guardar a memória desses lugares. Dizemos que os órgãos oficiais acham que favela não tem história, nada para contar. O museu, então, surgiu para guardar o que resta”, comenta José Augusto de Paula Pinto.

Espaço vivo

Por receber, constantemente, as narrativas dos moradores da favela, o Muquifu tornou-se não apenas um lugar de resistência, mas uma célula viva em meio à esterilidade a qual o Morro do Papagaio está sujeito. “Todos os nossos objetos não existem por si só, mas pela história que contam. Não negamos nada e sempre tentamos expor”, conta José Augusto de Paula Pinto, que recentemente viajou, pela primeira vez, com o Muquifoca, uma adaptação do museu para um carrinho de pipoca. “Andando pela capital, vi o carrinho abandonado em um terreno e compramos. Nossa ideia é trabalhar a itinerância num lugar que é tão grande. Quando tem festas e reuniões na comunidade, levamos o carrinho, criando essa comunicação do museu com os moradores. Adaptamos levando os livros e emprestando”, orgulha-se ele. Para Liduína Rodrigues e seu Museu da Boneca de Pano, além de resgatar a memória local, esses espaços também devem servir como agitadores culturais.

“O museu, inserido na comunidade, resgata a história de todos. Temos a Calçada Cultural, um evento que acontece durante o ano levando pessoas de fora e pessoas de dentro do bairro para apresentações no museu”, conta, pontuando as atividades de percussão e perna de pau, esta última, no final do ano apresentará o espetáculo “Boi Surubim na perna de pau”. Além delas, o museu também criou o Bloco do Rói-Rói, expõe trabalhos de estudantes da região e ensina meninos e meninas a confeccionarem suas próprias bonecas e bonecos de pano. “Menino, temos muita coisa!”, entusiasma-se ela. “Criamos um vínculo muito forte com a comunidade, abrimos a noite para receber alunos do Ensino para Jovens e Adultos e fazemos trabalhos com os moradores do Pici. No ano passado, expomos releituras das obras de Tarsila do Amaral feita pelos alunos mais velhos”, diz a idealizadora do local, que recentemente foi contemplado pelo edital da Caixa Cultural para tornar o museu acessível.

“A boneca de pano nos leva ao mundo da imaginação e permite trabalhar o lúdico em outras perspectivas. Nosso desejo é resgatar o fazer para o encantamento das crianças. Hoje, a tecnologia é muito boa, mas afasta as crianças do mundo do criar. Antigamente a boneca de pano era a boneca de trapos. Existem várias tipologias, temos as decorativas, as que são utilizadas na cozinha, como puxa-saco ou bate-mão. Com um simples retalho e sem agulha é possível fazer uma boneca”, afirma Liduína, cujas bonecas de infância eram feitas pela mãe. “O museu fortaleceu mais essa afetividade em mim. Por isso, busco despertar nas crianças o ‘ser’ e não o ‘ter'”, sorri. “Essas histórias são comuns porque vem de pessoas comuns, o que não significa que não seja nobre”, concorda Roberto Dilly.

A nobreza de um conto está, segundo o coordenador do Muquifu José Augusto de Paula Pinto, nos olhos de cada um. Por isso, o museu belo-horizontino cria campanhas e exposições que colocam em destaque os próprios moradores. Maria de Lourdes, a dona das bonecas emprestadas ao museu, aparece na recente campanha da Primavera dos Museus, com o rosto pintado como um índia, ao lado da inscrição “A favela é uma grande aldeia”.

Outra moradora, Catarina, estampou a campanha da Semana de Museus deste ano, numa releitura do clássico quadro “Mulher com brinco de pérolas”, do holandês Johannes Vermeer. Exposições como “Doméstica, da escravidão à extinção”, que apresenta fotografias de quartos de empregadas, servem como voz crítica de uma narrativa oficial que insiste em fazer das vidas, retalhos. Nesses espaços, retalhos dão vida a colchas coloridas, dão vez a um coletivo que é uníssono.

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