Comunicadores da página Maré Vive falam sobre vivências dentro da favela
A iniciativa possibilitou o contato com o ponto de vista de quem tem a intervenção no seu dia a dia
A intervenção federal no Rio de Janeiro, que teve início no mês passado, foi debatida em evento realizado em Juiz de Fora com a participação de comunicadores que vivem no Rio de Janeiro. O encontro, que recebeu o nome de “Psicologia e o impacto da criminalização e da militarização: políticas sobre ‘drogas’ e racismos”, foi promovido pelo Grupo de Trabalho Relações Raciais (GTRR) na Psicologia do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP MG), subsede Sudeste. O evento abrangeu a complexidade das relações que envolvem o olhar que a sociedade tem sobre as comunidades periféricas, sobre quem vive nelas e a forma como as instituições lidam com elas.
A iniciativa possibilitou o contato com o ponto de vista de quem tem a intervenção no seu dia a dia. Os comunicadores Josinaldo Medeiros e Naldinho Lourenço, que fazem parte da página Maré Vive, falaram sobre suas vivências e resistências feitas com a comunicação comunitária. O grupo do qual eles fazem parte começou o trabalho por essa via em março de 2014, uma semana antes da intervenção aprovada por um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) assinado por Dilma Rousseff, quando os cariocas entenderam que haveria uma concentração maior de violência e de violações de direitos humanos. O que era para ser um trabalho pontual e datado vem se consolidando até hoje, em função da continuidade das ações.
Os integrantes do Maré Vive ilustraram a dureza do que vivem diariamente. “Nós recebemos mensagens de tiroteio o tempo todo. Fazemos o acompanhamento do que as pessoas nos mandam e, em alguns momentos, precisamos fazer o papel de psicólogos. Uma vez, por exemplo, um adolescente, durante um tiroteio, pediu ajuda para acalmar a mãe dele, que estava desesperada. Também recebemos mensagens de mães que precisam trabalhar, precisam deixar os filhos em casa e ficam amedrontadas.”
A professora e militante de Juiz de Fora Adenilde Petrina trouxe a vivência de periferia de Juiz de Fora, no Bairro Santa Cândida, Zona Leste, desde a construção da localidade por seus moradores. “Cansamos de ser o quarto de despejo da sociedade. Corremos com o teatro do oprimido em toda a periferia. Depois, com a rádio comunitária, em que tínhamos a oportunidade de falar, estudávamos, pesquisávamos e tínhamos que falar tudo o que pudéssemos. Porque, se ela acabasse, não podíamos ter remorso.” Todas essas resistências, segundo ela, buscam a construção de um mundo melhor, em que a comunidade, unida, possa ser protagonista de sua própria história.
Como analisar essas vivências
Pensando nos impactos e nas formas de avaliar esse quadro, o psicólogo Victor Ferreira Roque Rocha, que trabalha na Penitenciária Professor Ariosvaldo Campos Pires, em Juiz de Fora, destacou a presença constante das resistências dentro das periferias. “Elas sempre existiram. As comunidades se movimentam em minorias que não sabem que são maiorias. A elite sempre teve medo disso. Os territórios populares sempre tiveram potência.” No entanto, o lugar de silenciamento em que são colocadas fazem com que esses espaços sejam ocupados de maneira violenta. “A intenção não é o combate ao crime, é o combate à pobreza.”
O doutor em psicologia, integrante do grupo de capoeira Quilombo Òkòtó, Izaque Miguel, que também é professor de Psicologia na Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio (Faetec), ressaltou a importância da análise da situação por referenciais teóricos que não sejam, exclusivamente, eurocêntricos. “Nas universidades, sempre que escolhemos uma linha de pensamento, buscamos referenciais do Norte. Cabeças euroamericanas. Há várias formas de buscar ferramentas conceituais. Precisamos compreender quem somos.” Essa referenciação, que toma como base a visão europeia das construções, ajuda a esmagar e oprimir todas as vivências periféricas.
“O Brasil é atravessado por uma guerra racial de alta intensidade e a existência dessas situações é desprezada. E o desprezo é uma das formas de auxiliar o extermínio. É preciso criminalizar para esmagar”, analisa Izaque. Por isso, segundo o psicólogo, urge que se produza uma percepção dos acontecimentos por outros pontos de vista, para encontrar formas de romper com todo esse ciclo, que começa quando pessoas brancas fora das comunidades pensam, por exemplo, em intervir ‘levando cultura e conhecimento’ para as favelas. “Essas expressões são covardes. Desumanizam e descaracterizam as pessoas. Definem o pobre pelo não ter. Os territórios populares estão cheios de soluções. Então, precisamos pensar e abordar esses assuntos de maneira mais crítica. Pensar esses referenciais de maneira mais crítica.”