AGOSTO LILÁS: Mais de 400 medidas protetivas de urgência são concedidas no primeiro semestre em JF

Na terceira, de quatro reportagens da série “Olhares contra a Violência”, Tribuna aborda a importância das medidas protetivas, as revogações e os obstáculos enfrentados por mulheres para garantirem a própria segurança


Por Maria Luiza Guimarães*

20/08/2025 às 06h00

AGOSTO LILÁS: Medidas protetivas se mantêm em alta e reforçam alerta sobre violência contra a mulher
Foto: Pexels

Uma mulher preta, catadora de recicláveis, foge de um relacionamento abusivo enquanto percorre as ruas de São Paulo com seus filhos pequenos. Essa é a história de Gal, interpretada por Shirley Cruz, que contracena com Seu Jorge em “A Melhor Mãe do Mundo”, novo filme da diretora Anna Muylaert. Lançado no dia 7 de agosto, mês também dedicado à campanha de combate à violência contra a mulher no Brasil, o longa mostra como, diante da violência doméstica, a protagonista transforma a fuga em uma jornada de proteção e resistência, revelando, nas entrelinhas, temas como ausência de rede de apoio e desigualdade social. Ao mesmo tempo, o filme se torna um retrato de tantas mães e mulheres espalhadas pelo mundo.

Infelizmente, não é preciso ir longe para resgatarmos relatos como o do filme. Lúcia, nome fictício que será usado para preservar sua identidade, é juiz-forana e se casou jovem, aos 17 anos. Com o companheiro, seu agressor e hoje ex-marido, teve dois filhos, atualmente com 15 e 20 anos. Em entrevista à Tribuna, ela contou que reconhecer que vivia um ciclo de violência dentro de casa não foi fácil. Muitas vezes, não havia agressão física, o abuso vinha de forma psicológica, por meio de manipulações, e também patrimonial, tipo de violência que muitas mulheres desconhecem a previsão na Lei Maria da Penha. A violência patrimonial ocorre quando o agressor controla ou destrói bens da vítima, impede o acesso ao dinheiro ou utiliza o patrimônio dela sem consentimento, como forma de manter o domínio sobre a mulher. Além disso, por muito tempo, Lúcia se culpou pela situação.

Com o passar dos anos, a violência também se tornou física e, por trás de cada episódio violento, havia o sofrimento de dois filhos pequenos que presenciavam as agressões. Lúcia relata que, até registrar o primeiro boletim de ocorrência em 2023, foram 21 anos de casamento, sendo 12 deles marcados pelo ciclo de violência. Em dezembro daquele mesmo ano, após uma nova agressão, ela decidiu denunciar. Hoje, já são mais de 20 boletins registrados contra o ex-companheiro. No mesmo período, a Justiça concedeu uma medida protetiva. “O processo para conseguir a medida foi rápido, o pedido foi feito em um dia e, no dia seguinte, já havia sido concedido”, conta.

Entretanto, em maio deste ano, Lúcia foi notificada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) de que a medida protetiva havia sido revogada, decisão que a deixou ainda mais insegura. Hoje, morando apenas com o filho mais novo, ela relata que ambos se sentem desprotegidos sem a garantia legal. Para Lúcia, a medida continua sendo fundamental para reconstruir sua rotina com tranquilidade e segurança, especialmente porque o ex-companheiro tem direito a visitas assistidas com o filho caçula, hoje intermediadas por sua irmã, conforme determinação judicial. Diante disso, ela segue em busca de reverter a situação e retomar a proteção concedida anteriormente.

Violência em números 

De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgados pelo Painel da Violência contra a Mulher, em 2024 foram concedidas 40.308 medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha em Minas Gerais. Deste total, 851 foram registradas apenas em Juiz de Fora. Ainda no mesmo período, em âmbito estadual, 9.531 medidas foram revogadas e 3.779 prorrogadas. Trazendo esse cenário para o município, 177 medidas foram revogadas e apenas 18 prorrogadas.

Até 30 de junho de 2025, Minas Gerais contabilizou 20.663 medidas protetivas de urgência concedidas, das quais 445 foram registradas em Juiz de Fora. O número no estado equivale a 51,2% do total concedido em todo o ano passado, o que evidencia a persistência do cenário de violência doméstica, sem grandes avanços na sua contenção. No mesmo período, 4.162 medidas foram revogadas em Minas, sendo 120 delas em Juiz de Fora. Diante desses dados, surge uma questão importante: por que tantas medidas protetivas acabam sendo revogadas?

MEDIDA PROTETIVA Delegada Adriana Foto do Leo
Delegada Adriana Ferreira Pereira, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) em Juiz de Fora. (Foto: Leonardo Costa)

A delegada Adriana Ferreira Pereira, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) em Juiz de Fora, explica que as medidas protetivas não são permanentes, elas têm prazo determinado e podem ser revogadas quando se entende que o risco à vítima já não existe. “Muitas vezes, a situação que motivou a concessão da medida não persiste, seja em relação à integridade física, moral ou psicológica da vítima”, afirma. Ela ressalta que casos de violência doméstica frequentemente estão atrelados a disputas familiares e questões civis, como guarda de filhos ou partilha de bens, e por isso muitas mulheres são encaminhadas à Defensoria Pública. 

A delegada também destaca a importância de reunir provas, mesmo em casos em que não há marcas físicas da agressão, como ocorre na violência psicológica, moral ou patrimonial. Nesses casos, registros de mensagens, movimentações financeiras e o depoimento da vítima têm peso importante e ajudam quando é necessária a prorrogação da medida. Por fim, Adriana alerta que o descumprimento de uma medida protetiva é crime e pode resultar em prisão em flagrante, mesmo que o agressor apenas envie mensagens ou tente contato, contrariando a ordem judicial. É importante que a vítima acione imediatamente a autoridade policial, seja por meio do Disque 180, do 190 ou presencialmente.

Maioria das revogações parte da vítima

Já a juíza Roberta Chaves Soares, do 4º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Belo Horizonte, afirma que, na prática observada no dia a dia do tribunal, a maioria das revogações de medidas protetivas parte da própria vítima e não necessariamente por estarem fora de risco. Segundo ela, é comum que mulheres solicitem a retirada da medida após retomarem o relacionamento com o agressor ou por receio de prejudicá-lo, seja no trabalho ou na vida pessoal. 

Em alguns casos, o sentimento de culpa ou a dificuldade de tratar questões práticas, como a guarda dos filhos, diante das restrições impostas pela medida, também motiva o pedido. A juíza destaca ainda que esse movimento é frequente quando o agressor é filho da vítima, especialmente em situações envolvendo dependência química. Embora seja raro, há quem retire a medida acreditando que o agressor irá mudar, ou mesmo para tentar recomeçar a vida em outra cidade. Roberta esclarece que a revogação não ocorre automaticamente caso a vítima volte a ter contato com o agressor, nesses casos, é feita reavaliação da situação de risco e, se necessário, o encaminhamento à Central Multidisciplinar. Segundo ela, revogações por razões técnicas ou judiciais são exceções, e a maioria depende da manifestação expressa da vítima.

Dar o primeiro passo

A delegada Adriana também esclarece quais situações permitem que a mulher solicite uma medida protetiva e quais tipos de violência estão amparados pela Lei Maria da Penha. Além de agressões físicas, estão incluídas violências psicológica, moral, sexual e patrimonial. Casos como manipulação emocional, xingamentos, difamações, humilhações constantes, controle financeiro, destruição de bens ou retenção de documentos são igualmente contemplados. A delegada destaca que é comum que muitas mulheres não reconheçam, de imediato, que estão em situação de violência, justamente porque essas agressões nem sempre deixam marcas visíveis, o que reforça a importância da informação e da conscientização.

Ao perceber que está em um ciclo de violência doméstica, a vítima deve procurar imediatamente uma unidade policial, preferencialmente a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, e registrar um boletim de ocorrência. Nesse momento, ela não precisa de advogado, podendo relatar os fatos sozinha. A autoridade policial tem até 48 horas para encaminhar o pedido de medida protetiva ao Judiciário, que avaliará a concessão. As medidas podem incluir afastamento do agressor do lar, proibição de contato com a vítima e outras formas de proteção. A delegada, por fim, pontua que, mesmo quando não há testemunhas, a palavra da vítima tem valor probatório significativo, especialmente quando acompanhada de elementos como mensagens, áudios, fotos, gravações ou qualquer outra evidência. A rede de proteção também envolve apoio psicológico, atendimento social e orientação jurídica, garantindo acolhimento e segurança para que a mulher possa romper o ciclo de violência.

*estagiária sob supervisão da editora Fabíola Costa

Tópicos: Agosto Lilás

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