Subnotificação é desafio da saúde no enfrentamento à violência doméstica
Na segunda matéria da Série Olhares contra a Violência, a Tribuna mostra a importância da identificação e notificação de casos suspeitos nas unidades de saúde
A violência doméstica é também um problema de saúde pública. No primeiro semestre de 2025, 79 casos de agressão foram identificados de maneira preliminar em estabelecimentos de saúde na cidade, de acordo com a Secretaria de Saúde (SS) da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) – uma média de 13 vítimas por mês. O número é menor do que o verificado nos seis primeiros meses do ano passado, mas não menos preocupante. De janeiro a junho de 2024, foram contabilizadas 190 notificações de possíveis agressões – mais que o dobro do observado no mesmo período deste ano.
Muitas vezes, bastaria a palavra da vítima para caracterizar a violência como um crime, conforme a Lei Maria da Penha, mas, no Brasil, o abismo entre a teoria e a aplicação das leis dificulta ainda mais a vida de mulheres que sofrem diariamente com agressões. “A dificuldade de conseguir provas pode aumentar a subnotificação e também desestimular a denúncia. A mulher que convive com a violência tem receio de como vai ser atendida, por exemplo, em uma delegacia”, aponta a advogada especialista em direito das mulheres Leidiane Salvador. O atendimento em unidades de saúde públicas, neste contexto, é mais uma ferramenta para sustentar a fala da vítima.
“A medicina-legal é fundamental para que o profissional da saúde tenha a capacidade, primeiro, de acolher, mas principalmente de produzir provas que auxiliem na investigação de casos de violência doméstica”, explica o professor da disciplina medicina-legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Tulio Vieira.
Ramo de atuação da área da saúde, a medicina-legal aplica conhecimentos médicos e científicos para auxiliar na resolução de questões penais, produzindo exames e laudos periciais que posteriormente podem ser utilizados como provas contra agressores, o que garante continuidade ao processo jurídico. Além disso, a medicina-legal tem a responsabilidade de sistematizar dados e de encaminhar pacientes para a rede de apoio municipal em casos em que a violência é verbalizada durante o atendimento clínico, como indica o profissional.

Notificação compulsória
Desde 2019, a violência doméstica é caracterizada pela notificação compulsória, exigindo que os trabalhadores da área formalizem às autoridades a situação clínica em que as pacientes vítimas se encontram. A discrepância entre o número de casos confirmados e o de identificações preliminares em unidades de saúde registradas pelo Município, no entanto, pode ser um sinal de alerta de que a subnotificação pode ser alimentada pela dificuldade da vítima acessar e/ou verbalizar o crime ainda no atendimento de porta.
Como exemplo, em 2024, foram notificados 2.197 casos de violência doméstica nos primeiros seis meses do ano em Juiz de Fora, segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp). Com esse total, em média, 12 mulheres foram oficialmente registradas como vítimas de violência doméstica por dia na cidade. Enquanto isso, tendo por base as identificações preliminares após o atendimento clínico durante o mesmo período, a média cai, drasticamente, para apenas uma por dia.
“O que também pode desmotivar as mulheres a procurar o atendimento é a distância até o estabelecimento. Até porque, elas vão precisar de tempo para acessar o serviço. Muitas têm filhos pequenos. Muitas nem sabem quais políticas públicas existem”, afirma a psicóloga da Secretaria Especial das Mulheres da Prefeitura de Juiz de Fora, Alice Tristão.
A Tribuna entrou em contato com a Sejusp para atualizar os dados de violência doméstica contra mulheres na cidade em 2025, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
A revitimização agrava a subnotificação
Outra possibilidade para as denúncias escassas em estabelecimentos de saúde é a de que os trabalhadores não estariam notificando corretamente as situações de agressão. “Muitas vezes, até pelo desconhecimento da obrigatoriedade de registrar, o profissional perpetua a violência e acaba contribuindo para a subnotificação. Estamos melhorando, mas ainda temos muitos desafios para evoluirmos”, avalia Tulio.
Além de estarem capacitados e sensibilizados, profissionais da saúde também precisam evitar as formas traumáticas de intervenção, que podem gerar, como exemplo, a revitimização, que agrava a subnotificação. O desafio da saúde pública é não causar na paciente um novo trauma.
“Quando a mulher tenta relatar a situação de violência uma, duas, três vezes, ela se sente silenciada, pois em cada fala ela precisa reviver o momento da agressão. A tendência é não procurar mais o atendimento para evitar o sofrimento”, destaca Alice. Segundo a profissional de saúde mental, a revitimização é um problema ainda maior, porque pode desencadear outros transtornos psíquicos e, até mesmo, físicos com o passar do tempo.
Conforme a advogada especialista em direito das mulheres, Leidiane Salvador, se uma vítima não se sente devidamente acolhida em um momento de escuta, a tendência é que, a partir de então, ela não exponha outras situações de agressão.
Para o professor Tulio Vieira, a revitimização vem sendo cada vez mais debatida no contexto da saúde, mas ainda é um problema comum nas unidades de atendimento. Por isso, é fundamental que os profissionais de saúde possuam formação adequada, mas também estrutura que possibilite o atendimento correto a essas mulheres.
Incentivo ao acolhimento
“É importante pensar que profissionais de saúde também estão inseridos em uma cultura que é estruturalmente machista. Por mais que tenham estudos e momentos de reflexão, há coisas que ficam”, argumenta Alice Tristão.
Para Leidiane, alguns recortes também aumentam os desafios da atuação dos profissionais. Conforme a advogada, classe social, falta de escolaridade e raça são métricas que agravam a realidade das vítimas de violência e também o processo de acolhimento da saúde pública. “Essas mulheres, muitas vezes, terão dificuldades em acessar serviços e podem conviver com a ausência de informações sobre o que é, de fato, um ato de agressão.”
A formação profissional é considerada ponto fundamental para garantir à saúde pública qualidade no atendimento, no acolhimento e no desenvolvimento de soluções para questões que giram em torno do enfrentamento à violência doméstica. Tulio explica que a grade curricular dos cursos de saúde mudou e segue em atualização. “Atualmente, a formação do profissional em saúde está voltada para questões técnicas, mas também em como aplicar esses conhecimentos em situações de atendimento. A ideia é torná-lo mais humanizado.”
Individualizar problemas é erro
No entanto, individualizar os problemas da saúde pública na figura do profissional é um erro que, segundo o professor da UFJF, não pode ser cometido. “Os gestores também devem ser responsabilizados. Há casos em que o coordenador da unidade exige aos seus trabalhadores atendimento em, no máximo, 20 minutos. Então, você tem que atender muito ou bem? Isso precisa ser discutido.”

Tulio acredita que a melhor forma de garantir qualidade no atendimento às vítimas de violência doméstica é concentrar o serviço em centros especializados espalhados em diversas regiões da cidade. “Muitas vezes, o profissional também é vítima da violência e acaba perpetuando esse sentimento de insegurança, de agressividade e de medo. Realmente, o ideal é que tivéssemos mais centros especializados voltados para acolher, atender e divulgar informações às vítimas. Caso contrário, não vamos conseguir resolver essa questão que faz parte da realidade nacional”, pontua.
*Estagiário sob supervisão da editora Fabíola Costa
Tópicos: Saúde Pública / violência contra mulher / violência doméstica