Tombamento da Fazenda da Floresta busca preservação da história e memória de Juiz de Fora
Processo para proteção definitiva do patrimônio histórico está parado para adequações solicitadas pela Procuradoria Geral do Município

O casarão erguido por volta de 1850, com características típicas da arquitetura colonial brasileira, guarda diversas memórias que ajudaram a construir a história da região e do Brasil. A propriedade teve grande destaque no período do Ciclo do Café, com uma vasta produção cafeeira sustentada pela mão de obra escravista. Essas terras ficam localizadas onde hoje é o Bairro Floresta, Zona Sudeste de Juiz de Fora, e também foram palco de articulações políticas e resistência, com a existência de um quilombo. A área da fazenda ocupou um espaço importante no desenvolvimento industrial da cidade com a fábrica de tecidos São João Evangelista. Por seu valor histórico, a propriedade aguarda a conclusão de seu processo de tombamento para garantir a preservação da edificação e das histórias de outros tempos que ela carrega. Por isso, é abordada na terceira matéria da série Nosso Patrimônio, realizada pela Tribuna de Minas.
“É uma fazenda importante pelas questões históricas e arquitetônicas, e não podemos deixar de pensar que ali é um lugar de memória, transpassado por várias narrativas e não apenas uma, há uma importância para os proprietários, mas também para a comunidade ao redor”, afirma a gerente do Departamento de Memória e Patrimônio Cultural da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa), Renata Moraes.
O tombamento da Fazenda da Floresta, solicitado em 1997, foi aprovado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac) no ano passado e encaminhado à Procuradoria Geral do Município (PGM), que solicitou ajustes técnicos relacionados ao entorno da propriedade, que também faz parte da área tombada. No momento, a conclusão desses apontamentos está a cargo de uma arquiteta do Comppac, etapa necessária para que o processo siga para a sanção do decreto.

Em documentos do processo, arquivados pela Funalfa e consultados pela Tribuna, o arquiteto Paulo Gawryszewski, que elaborou o parecer técnico para o tombamento, explica que a medida evita modificações futuras que possam vir a descaracterizar o imóvel. O arquiteto afirma que a sede da fazenda, ainda no século 21, é bem conservada. “A Fazenda viveu intensamente momentos importantes da história brasileira, como a economia cafeeira, a escravidão, a imigração, a indústria têxtil (ainda em atividade) e a mão de obra operária das fábricas”, escreveu o arquiteto.
Durante o processo de tombamento, os proprietários atuais chegaram a pedir o arquivamento do processo e o cancelamento da proposta, alegando ausência de valor arquitetônico e histórico-cultural da fazenda devido a uma perda da originalidade após reformas. Eles também argumentaram que haveria prejuízos financeiros relacionados a custos de manutenção, os quais não poderiam arcar, e que a burocracia para aprovar reparos urgentes na construção antiga geraria riscos. No entanto, conforme avaliação do Comppac, detalhes da história do local justificam seu tombamento.
A reportagem da Tribuna foi até a fazenda para tentar contato com a família, mas foi informada que os proprietários não moram no local. Posteriormente, foi feito o contato com um dos responsáveis pelo espaço, que não quis se manifestar sobre a decisão do Comppac e não autorizou a visita da equipe ao interior do imóvel.
O passado da Fazenda da Floresta

Em meados de 1850, teve início a construção da Fazenda da Floresta na Rodovia BR-267. O local já foi conhecido como Retiro e Paiol Queimado até se tornar a Fazenda da Floresta. O imóvel foi comprado em 1858 por Francisco Ribeiro de Assis, político da cidade naquela época, e administrado por sua esposa Carolina de Assis após sua morte. Ainda hoje a fazenda é propriedade de descendentes da família Assis.
O complexo incluía não apenas a casa-sede, mas também senzala, terreiros, igreja e outras edificações de apoio. Com a produção de café, a fazenda se tornou uma das mais prósperas da região. Em coexistência com o sistema escravocrata, segundo os arquivos da Funalfa, existia um quilombo em lugar chamado de Alto da Pedra do Café, que representava a resistência e a luta pela liberdade.
Com a abolição da escravatura em 1888 e as mudanças econômicas do início do século 20, a Fazenda da Floresta também passou por transformações. Em 1922, sob a administração de Teodorico Ribeiro de Assis, um dos herdeiros da família, foi instalada a fábrica de tecidos São João Evangelista no local. Essa transição marca a passagem da economia agrária para a industrial, com a mão de obra, antes escravizada e depois imigrante, dando lugar aos operários da fábrica. Ao redor da fazenda, foram erguidas 160 casas onde os funcionários moravam, a conhecida Vila Operária. Ainda hoje, há famílias que moram e tiram seu sustento da fazenda.
Além disso, a fazenda também atuou como ponto de encontro de políticos brasileiros, recebendo a visita de figuras como Getúlio Vargas, Antônio Carlos e Olegário Maciel. De acordo com os documentos da Funalfa, é possível que a decisão de iniciar o Movimento de 1930 – golpe militar e político no Brasil que pôs fim à República Velha e levou Getúlio Vargas ao poder, marcando o início da Era Vargas – tenha acontecido após essa visita ao local.
Além da questão histórica, a área possui um vasto espaço de preservação ambiental. Com mais de mil hectares de terra, a propriedade preservava 450 hectares de Mata Atlântica no início dos anos 2000. A reportagem não teve acesso a dados mais atuais.
As lembranças de quem por ali viveu

A importância do tombamento da fazenda vai para além dos trâmites legais. O local marcou e ainda marca pessoas que viveram lados distintos dessa história. Para Regina de Assis, 85 anos, neta de Teodorico e Emerenciana de Assis, proprietários na época da fundação da fábrica têxtil, a Fazenda da Floresta era o “centro amoroso” da família. Após o falecimento dos avós, os sete filhos criaram um rodízio para o uso da casa, garantindo que o local permanecesse como ponto de encontro. “Nossas melhores memórias de infância são de lá. As férias, o Natal, os casamentos na capelinha de Nossa Senhora da Glória, que fica no alto de um monte, tudo acontecia em torno da fazenda”, relembra Regina.
Apesar das memórias felizes, Regina não ignora o passado escravocrata da fazenda, que ela define como uma “memória dolorida”. Por muitos anos, ela foi professora na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e também chegou a exercer o cargo de secretária municipal de Educação no Rio de Janeiro. Por causa da sua experiência profissional, Regina enxerga a aprovação do tombamento como uma medida fundamental para preservar as diversas camadas dessa história. “Um bem tombado tem uma proteção maior, e a fazenda é um elemento vivo da própria história da cidade, que precisa ser mantido para as futuras gerações”, conclui.
Embora estejam interligados ao mesmo lugar, as memórias de quem viveu na casa-sede se diferenciam das de quem morava ao redor. O professor e presidente do bloco carnavalesco “Unidos do Bairro Floresta”, Márcio Santana, de 58 anos, nasceu e cresceu no Bairro Floresta. Por muito tempo, o sustento da sua família veio do trabalho de seu pai, Geraldo José Santana, primeiro como lavrador na fazenda e depois como operário na fábrica. “Meu pai exerceu várias funções dentro da fazenda. Tinham trabalhos insalubres, como alimentar os porcos cozinhando inhame em tachos gigantescos.”
Márcio reconhece o pioneirismo cultural e econômico da família Assis, mas faz questão de lembrar que essa história também é marcada pela exploração e pela resistência da população escravizada. “A mão de obra no plantio e na colheita se baseava na mão de obra escrava. Meu bisavô, Zé Santana, foi escravo”, destaca. Por décadas, a vida no bairro parecia ter um “destino pré-determinado” entre o trabalho na fazenda ou na fábrica, diz o professor. Ele mesmo chegou a trabalhar lá por um dia, antes de mudar seu caminho e, conforme suas palavras, “furar a bolha”. Para Márcio, o tombamento é essencial para que essa memória não se apague. “Nós não podemos negar a história, mesmo com essa face escravista que a fazenda teve. O tombamento pode virar os holofotes para o bairro, estimulando o turismo e a cultura”, defende.