Matriz africana, espiritismo e os sem religião redesenham o campo da fé em JF
Minoritários em números, esses grupos expressam a diversidade de crenças, silêncios e trajetórias que ampliam o cenário religioso local
Minoritários em número, mas significativos em impacto social e simbólico, grupos como as religiões de matriz africana, o espiritismo e os que se declaram sem religião redesenham o campo religioso em Juiz de Fora. Na segunda reportagem da série “As Rotas da Crença”, a Tribuna de Minas investiga como essas expressões, em expansão ou reconfiguração, têm tensionado os limites da institucionalidade religiosa e revelado uma pluralidade de crenças, práticas e trajetórias. Com base nos dados do Censo Demográfico 2022, o quadro evidencia não apenas crescimento proporcional e mudanças geracionais, mas também luta por reconhecimento, desafios de permanência e novas formas de vivência espiritual.

Religiões de matriz africana crescem e ganham mais visibilidade
Apesar de ainda representarem, oficialmente, uma parcela pequena da população, as religiões de matriz africana vêm crescendo em Juiz de Fora. Dados preliminares do Censo Demográfico 2022 mostram que a soma de praticantes da Umbanda e do Candomblé na cidade passou de 0,35% em 2010 para 1,18% em 2022 — aumento expressivo em termos proporcionais.
Para Emerson José Sena da Silveira, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF, o avanço é reflexo de uma mudança de comportamento: “No geral, quando você perguntava antes, muitas pessoas se diziam católicas ou espíritas, mesmo frequentando religiões afro. Agora, há uma reconfiguração sobre como as pessoas se apresentam socialmente — e em como aderem à fé”, avalia.
Segundo ele, esse movimento é impulsionado por fatores sociais: “As pessoas que se identificam com essas religiões perderam o medo de se assumir, principalmente por conta das lutas contra o racismo e o preconceito. Antes, muitos se abrigavam sob o rótulo de católico ou espírita. Hoje, assumem com mais tranquilidade a identidade de umbandistas ou candomblecistas. A própria expressão ‘baixo-espiritismo’, que era usada para desqualificar essas práticas, já perdeu força”.
Entre preconceitos e tabus
Para o fundador do Centro Espírita Oxóssi Iemanjá, Eduardo dos Santos Porcino, a internet e a maior divulgação de informações foi positiva para a adesão à religião. “O crescimento das religiões de matrizes africanas se deve principalmente pelo mundo globalizado, pela riqueza de informações positivas através da internet, onde tabus foram e são quebrados, onde a mistificação do nosso culto foi extirpada pelo conhecimento real da seriedade dele e, principalmente, pela competência dos sacerdotes em abrirem as portas de suas casas de santo dando oportunidade para muitos interessados conhecerem a grandeza real da religião de matriz africana.”
Esse processo de afirmação, no entanto, ainda enfrenta obstáculos. Breno Peçanha, dirigente do Centro de Umbanda Pai Joaquim de Angola, destaca que, embora o preconceito tenha diminuído, ele persiste. “Hoje em dia está mais tranquilo se declarar umbandista. O tabu foi quebrado. Mas ainda existe muito julgamento, principalmente contra os jovens. Muitos pais não permitem que seus filhos frequentem os cultos por puro desconhecimento.”
Peçanha relata que frases como “isso é coisa do diabo” ou “isso atrasa a vida” ainda são ouvidas com frequência. “É um problema geracional, transmitido pela falta de informação. As pessoas não conhecem a nossa religião e reproduzem falas estigmatizadas. Falam sem nunca terem pisado em um terreiro”, aponta. Ele defende que o enfrentamento ao preconceito passa pela busca ativa de informação: “A fé não pode ser imposta, mas precisa ser compreendida. Ninguém é obrigado a acreditar, mas todos deveriam respeitar.”
Já Porcino explica que tem buscado formas de dialogar com as novas gerações por meio de visitas s escolas, palestras e diálogo constante. “Em algumas oportunidades, sempre sou convidado para fazer palestras em escolas, faculdades e principalmente em centros educativos onde tenho oportunidade de apresentar de forma explicativa e positiva a minha religiosidade.”
Para além da fé, Peçanha destaca o papel social desempenhado pelas religiões de matriz africana. “A nossa é a religião do abraço, do acolhimento. Recebemos a todos: pessoas LGBTQIA+, ex-detentos, profissionais do sexo. Trabalhamos com a diversidade em múltiplas dimensões, oferecendo apoio espiritual, moral e material”, afirma.
Os adeptos das tradições afro-brasileiras
Os dados do IBGE também mostram quem são os praticantes das religiões afro-brasileiras em Juiz de Fora. As maiores proporções estão entre pessoas que se identificam como amarelas (2,22% dos que declaram alguma religião em JF), pretos (1,81%) e brancos (1,14%). Em termos etários, os grupos mais representativos estão nas faixas de 20 a 24 anos (16,66%), 30 a 39 anos (19,68%) e 40 a 49 anos (15,82%).
Para Emerson José Sena da Silveira, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF, o perfil reflete um fenômeno que remonta às décadas de 1960 e 1970. “É uma religiosidade que, ao longo dos anos, passou a ser acolhida também por setores da classe média urbana, majoritariamente branca. O crescimento é sustentado por maior acesso à informação, pela atuação dos movimentos sociais e pelas lutas contra o racismo religioso.”
Ele lembra ainda conquistas simbólicas importantes, como o reconhecimento do dia 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa — em memória de Mãe Gilda de Ogum, vítima de intolerância em Salvador. “Esses marcos ajudam a legitimar e dar visibilidade a práticas religiosas que foram historicamente marginalizadas. Mas o desafio continua sendo o de ampliar o conhecimento e o respeito diante da diversidade e da complexidade das tradições afro-brasileiras.”
‘Sem religião’ cresce e revela pluralidade de crenças
Embora o avanço ainda seja tímido em relação ao cenário nacional, o aumento de pessoas que se declaram sem religião em Juiz de Fora confirma uma tendência de distanciamento institucional da fé, especialmente entre os mais jovens. No Brasil, a proporção de pessoas sem filiação religiosa passou de 7,9%, em 2010, para 9,3% em 2022. No município, o crescimento foi ainda mais expressivo: passou de 5,8% para 7,72%.
Os dados preliminares do Censo mostram que a maioria das pessoas que compõe essa categoria são homens. Eles representam 56,2% do total, o equivalente a 9,2 milhões de pessoas com 10 anos ou mais no país. Na cidade, o maior percentual de “sem religião” está concentrado na faixa etária entre 30 e 39 anos, que responde por 21,2% desse grupo.
O professor observa que o crescimento da categoria era esperado, mas veio em ritmo mais lento do que o estimado. “Os ‘sem religião’ foram muito aguardados e esperava-se um patamar maior, mas está em crescimento. Esse grupo é extremamente plural, formado por ex-católicos, ex-evangélicos, pessoas que deixaram de frequentar instituições religiosas, mas que nem sempre abandonaram a fé”, afirma.
Segundo ele, trata-se de um segmento marcado pela diversidade de trajetórias espirituais. “É um contingente muito fragmentado. Há desde pessoas que mantêm crenças próprias, fora das instituições, até aquelas que adotam posturas mais céticas. Muitas não se sentem representadas por nenhuma religião organizada e constroem, individualmente, suas formas de espiritualidade”, explica.
O crescimento desse grupo, ainda que gradual, aponta para uma mudança no modo como a fé é vivenciada na contemporaneidade: menos vinculada a instituições religiosas e mais orientada por experiências individuais, subjetivas e, muitas vezes, silenciosas.

Espiritismo busca reconectar-se com as novas gerações
Apesar da estabilidade numérica em Juiz de Fora, o espiritismo perdeu força no cenário nacional. Dados do Censo 2022 mostram que 5,29% da população da cidade se declarou espírita — número quase idêntico aos 5,3% registrados em 2010. Já no Brasil, a proporção caiu de 2,1% para 1,8%.
A retração, após décadas de crescimento, é interpretada por especialistas como reflexo de transformações sociais mais amplas. “O declínio dos espíritas, ou seja, caíram de 3% para 2% — eles vinham crescendo, e houve um decréscimo — também pode ser explicado, em parte, pela excessiva politização de uma parte do espiritismo, por mudanças sociais, por questões ligadas à transformação da sociedade brasileira. Uma outra questão que vai afetar os espíritas, que eu comentei indiretamente, é a valorização do mundo afro-brasileiro: umbanda, candomblé…”, analisa o professor Emerson Silveira.
A presidente da Comunidade Espírita A Casa do Caminho, Mirna Granato Salomão Nagib Marques, aponta a pandemia como fator relevante. “É importante considerarmos a realidade que surgiu com a pandemia da Covid-19, que afastou as pessoas das atividades religiosas por longo período e o Censo foi realizado logo após. Especificamente no espiritismo houve uma interrupção de atividades mais longa do que na maioria das outras religiões.”
Ela destaca ainda o perfil plural do público que frequenta os centros. “Precisamos considerar ainda que o centro espírita recebe frequentadores de diversas religiões de modo regular e crescente. Este cenário, tão comum no nosso meio, reflete a proposta do espiritismo de que os princípios que difunde, como por exemplo imortalidade da alma, mediunidade e reencarnação, possam ajudar a todos no caminho da vida feliz.”
Com base na tríade filosofia, ciência e religião, a doutrina codificada por Allan Kardec encontrou espaço em Juiz de Fora ainda no século XIX, em um ambiente urbano, letrado e alinhado às ideias racionalistas de origem francesa. A prática espírita na cidade teve início com grupos como o Club Além Túmulo, formado por curiosos sobre os fenômenos mediúnicos. A primeira instituição formal, o Centro Espírita União, Humildade e Caridade, foi fundada em 1901, após reuniões iniciadas por Joaquim Gouvêa Franco, vindo do Rio de Janeiro.
Atualmente, a proposta do movimento espírita, segundo Mirna, permanece ligada ao acolhimento e à escuta. “O chamado movimento espírita precisa ser uma resultante de trabalho em favor das pessoas que sofrem. Para que isso aconteça, o movimento precisa ser de divulgação de conhecimento que esclarece e por consequência liberta. Movimento que acolhe seja a quem for não importando a origem ou a história prévia. Esse movimento deve ser baseado na orientação e na mensagem do Cristo, que, em essência, é a caridade e o amor ao próximo.”
Ela também observa que o centro é majoritariamente procurado por pessoas em sofrimento. “Em maioria significativa o centro espírita é procurado por pessoas que sofrem. O sofrimento como resultado de ausência de explicações para o sentido da vida, pela chamada perda de um ente querido, pela ausência de saúde física ou espiritual.”
A vida moderna como desafio
Para Mirna, o desafio está em manter os fundamentos doutrinários sem ignorar as transformações culturais e tecnológicas. “A sustentação de uma doutrina é sua base conceitual e seus princípios. Isso não deve mudar. Conforme esclarecem os espíritos superiores, que ditaram ao mundo a Doutrina Espírita, excetua-se a essa regra apenas mudanças relacionadas ao avanço da ciência. Mas devemos evoluir nos processos de divulgação da Doutrina Espírita considerando os novos tempos e as novas tecnologias, buscando novas formas de divulgação da vida além da morte do corpo físico, da reencarnação, da mediunidade, da vida em outros mundos e da existência de Deus e suas leis misericordiosas e justas. No mundo em que depressão e ansiedade prevalecem entre crianças e jovens, falar de verdades espirituais é promover libertação dos medos e fortaleza espiritual.”
Embora o IBGE tenha divulgado dados gerais sobre raça, gênero e escolaridade dos religiosos no Brasil, informações específicas sobre o perfil demográfico dos espíritas ainda não foram disponibilizadas.
*estagiária sob supervisão da editora Fabíola Costa