Especialista defende legalização e ‘cultura de educação’ sobre drogas
Psicólogo e ex-organizador da Marcha da Maconha, Bruno Logan se especializou em falar sobre os riscos decorrentes do uso inadequado de substâncias ilícitas
A redução dos fatores de vulnerabilidade e de risco para usuários de drogas, como forma de prevenção ao uso indevido de substâncias ilícitas, está prevista na Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). No entanto, mais de dez anos após a criação da lei, as políticas assistenciais voltadas para usuários de droga no Brasil não preveem ações de redução de danos. Até hoje, falar sobre o uso de drogas ilícitas é um tabu que pode reverter-se em prisão, já que a abordagem do tema pode ser considerada apologia, dependendo da forma como for tratado.
Apesar disso, este é um risco que não impede o psicólogo Bruno Logan de fazer o seu trabalho, que visa orientar os usuários de drogas sobre o uso adequado das substâncias. Atuando como redutor de danos há cerca de sete anos, três deles na Cracolândia, o paulista de 33 anos, natural de Diadema (SP), começou como organizador da Marcha da Maconha. Atualmente, é apresentador do canal “RD com Logan”, no YouTube. Nos vídeos, o especialista dá orientações para usuários de droga e fala sobre os riscos do uso inadequado de diversos entorpecentes. No ar há quase dois anos, o canal tem 34 vídeos e quase dez mil inscritos. O vídeo mais popular é o “Testes reagentes para LSD e ecstasy”, com 46 mil visualizações.
No dia 4 de maio, Bruno veio a Juiz de Fora para ministrar uma palestra a convite dos alunos da disciplina “Jornalismo e saúde”, da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Na ocasião, o psicólogo explicou como desenvolve seu trabalho de redutor de danos e falou ainda sobre a forma como os usuários são retratados na mídia. Em entrevista exclusiva à Tribuna antes da palestra, Logan defendeu a descriminalização do uso de drogas e afirmou que entorpecentes ilícitos não são um problema de saúde pública, mas social.
Tribuna – Como você se tornou um redutor de danos?
Bruno Logan – Para ser redutor de danos não é preciso, necessariamente, ter uma formação. Aos 16 anos comecei a organizar a Marcha da Maconha. Não tinha experimentado a droga e nem sou usuário, mas me interessei pelo tema por questões ideológicas. Por conta dos amigos que fiz, quis trabalhar com usuários de drogas e, a partir daí, decidi cursar psicologia. Assim que me formei, comecei na ONG É de Lei!, no primeiro centro de convivência do Brasil a trabalhar com redução de danos na Cracolândia. Foi lá que eu aprendi a ser redutor de danos.
– Como era seu trabalho na É de Lei!?
– Comecei no projeto Respire, que atua na redução de danos no contexto de festas, predominantemente em festas raves. Depois, entrei no trabalho de campo de convivência, com usuários de drogas que viviam na Cracolândia. Fiquei neste projeto por três anos e atuava como psicólogo, sentando no chão, na rua mesmo, e conversando com os usuários. Eram duas realidades muito diferentes. Enquanto o usuário da Cracolândia está em situação de rua, de alta vulnerabilidade, é usuário de crack, cocaína, álcool e maconha, na outra extremidade, as pessoas de classe média alta pagam R$ 500 para entrar em uma festa e usam ecstasy, LSD, cogumelo.
‘Enquanto o usuário da Cracolândia está em situação de rua, é usuário de crack, cocaína, álcool e maconha, na outra extremidade, as pessoas de classe média alta pagam R$ 500 para entrar em uma festa e usam ecstasy, LSD, cogumelo’
– E o que você aprendeu neste período?
– Aprendi que os usuários da Cracolândia estão em uma situação de vulnerabilidade social, enquanto a vulnerabilidade do segundo grupo está relacionada a uma falta de informação sobre as drogas, sobre o que vai acontecer se ele usar. Nas raves, os usuários não sabem usar e misturam LSD com ecstasy, maconha, haxixe, álcool, e acabam tendo um surto psicótico por até oito horas. Ele descola da realidade, não sabe dizer onde está, onde é a própria casa ou o próprio nome. Às vezes, a pessoa não consegue sequer falar, coisa que não acontece na Cracolândia, onde o cara fuma pedra e continua conversando com você como se nada tivesse acontecido.
– O termo “uso recreativo” é muito utilizado para falar de pessoas que usam drogas, mas que, por algum motivo, não são consideradas usuárias. Você concorda com o termo?
– Acho que todo mundo faz uso recreativo, inclusive o indivíduo que está em situação de rua. É da natureza humana buscar prazer. Então o cara que está fazendo uso de crack também está fazendo uso recreativo. É óbvio que o uso recreativo dele contribui para a desorganização de vida, porque ele já está vulnerável, mas a diferença é o tipo de vulnerabilidade a que essas pessoas estão expostas. A pessoa que está nas festas raves – e aí eu culpo muito o Governo por conta disso, porque temos uma educação com o tabaco e o álcool, mas não com outras drogas – tem uma gama muito grande de drogas que não são legalizadas ao alcance. E aí ela se coloca em uma posição de vulnerabilidade muito grande. Em três anos na Cracolândia, nunca vi uma pessoa morrendo por causa de crack. As mortes são decorrentes de acertos de conta com traficantes, não por causa da droga em si. Mas já vi pessoas morrendo por conta de uso de algumas drogas adulteradas em raves, que são vendidas como sendo uma coisa, mas são outra, e a pessoa acaba morrendo por overdose, porque surta, se joga do alto ou morre afogado na praia ou na cachoeira.
‘É preciso legalizar a venda, para romper completamente com o crime organizado, o tráfico de drogas, o financiamento do crime’
– A partir da sua experiência, a que você atribui o uso de drogas?
– Pude lidar com todo tipo de usuário e de contexto de uso, o que me fez enxergar que, no caso do usuário que vive na Cracolândia, o problema não é a droga, mas a situação em que o sujeito está inserido, por não ter moradia e acesso a lazer, esporte, cultura. Quando você conversa com essa pessoa, percebe que o crack não é o problema, mas sim a desorganização em diversos aspectos da vida. Eu assumo uma coisa tranquilamente: se eu estivesse na situação daquela pessoa, eu usaria crack, porque o cara está com frio, com sede, com fome, está fugindo da polícia, está sem acesso a nenhum prazer da vida. Quando ele fuma a pedra, tudo isso some, e dá uma sensação de prazer enorme à qual ele não tem acesso em outro leque da vida. É quase como um automedicamento, como uma forma de sobrevivência. Quando você começa a ajudar a pessoa a se organizar, o crack some.
– E como é possível resolver isso?
– É preciso pensar, junto com o usuário, formas de ajudá-lo a organizar sua própria vida. Conforme isso acontece, ele consegue medir a importância e o significado da droga na vida dele. Então, às vezes, faz sentido para a pessoa diminuir o uso, parar ou até mesmo continuar o uso, porque o problema não é a droga. Por isso, precisamos de governantes dispostos a fazer esse debate, mas, para além disso, precisamos de uma cultura de educação sobre drogas. Fazem-nos pensar que droga é uma coisa que faz mal, e uma coisa que faz mal tem que ser evitada, como se fosse uma doença. Essa é a resposta mais simplista, que ganha voto, e as pessoas acreditam nisso porque é uma questão de causa e efeito. Mas o problema das drogas não é de causa e efeito, existe uma complexidade muito grande. É muito mais difícil explicar para as pessoas que esse é um problema social. O único jeito de acabar com a Cracolândia é garantir moradia, educação, esporte, lazer, trabalho e saúde para essas pessoas.
‘Se a pessoa tivesse possibilidades na vida, ela não estaria ali. Quem é que vai querer ficar na rua, comendo lixo?’
– Então você acredita que a droga não seja um problema de saúde, mas social?
– Sim. A sociedade pensa que a pessoa está na Cracolândia porque escolheu ou porque é vagabundo, mas não é verdade. Se a pessoa tivesse possibilidades na vida, outro tipo de cuidado, distribuição de renda, ela não estaria ali. Quem é que vai querer ficar na rua, comendo lixo? Ninguém vai querer um negócio desse. Quando se fala de drogas, em cuidado com o usuário, se fala muito na saúde. Porém, no montante de pessoas que usam drogas, há uma quantidade muito pequena que tem algum problema derivado do uso. Dentro desse grupo, uma quantidade insignificante tem problema de saúde. Com o álcool, a situação é diferente. Mas no caso das drogas ilícitas, o maior problema que os usuários de drogas enfrentam no Brasil é relacionado à falta de direitos humanos, não à saúde.
– Quais são as mudanças na legislação necessárias para solucionar estas questões?
– O tema em si está no Ministério da Justiça, o que, para mim, é o maior erro. É preciso descriminalizar o uso, para que o ato de usar drogas deixe de ser crime. Já que a maioria não tem nenhum problema derivado do uso, o usuário está fazendo mal para quem? E com relação àqueles que têm algum problema, será que criminalizar não vai apenas deixá-los mais vulneráveis? Além disso, é preciso legalizar a venda, para romper completamente com o crime organizado, o tráfico de drogas, o financiamento do crime e o contato do usuário com o traficante. Um modelo muito legal disso é do Uruguai, porque o Governo é responsável pela substância, o que gera imposto e diminui a criminalidade. Inclusive, o usuário também tem que ter droga de boa qualidade. A cocaína pura, por exemplo, faz menos mal do que cocaína com pó de vidro, então é óbvio que precisamos lutar por isso, para reduzir os riscos.
– Você acredita que o preconceito ainda é um entrave para a sociedade compreender a realidade dos usuários de drogas?
– Sim, mas tento ser o mais didático possível. Acho que um caminho muito interessante é falar da história das drogas. A primeira proibição da maconha no mundo foi uma decisão de Napoleão Bonaparte, na França. A segunda ocorreu no Brasil, e a terceira, nos Estados Unidos. Nenhuma delas teve a ver com tráfico ou saúde, mas todas estavam relacionadas à migração e ao racismo. No Brasil, a primeira lei que proibiu a maconha proibiu também o candomblé e a capoeira, quando acabou a escravidão. Criminalizaram a conduta do negro com o intuito de manter aquele povo sob domínio. Tanto que, nessa época, se um branco fosse pego fumando ou vendendo maconha, ele pagava uma multa insignificante. Se fosse preto, era preso. Infelizmente, continua exatamente igual hoje em dia.
‘Um modelo legal é do Uruguai, porque o Governo é responsável pela substância, o que gera imposto e diminui a criminalidade’
– O que te levou a criar um canal no YouTube sobre redução de danos?
– Eu já tinha criado um aplicativo de celular voltado para usuários de drogas, chamado “App Redução de Danos”, o primeiro sobre redução de danos do Brasil. Mas ele cobrava anualmente um valor, e como nunca tive financiamento, resolvi colocar todo o conteúdo do aplicativo no YouTube, porque lá não preciso pagar. O aplicativo era, basicamente, uma bula de remédio. Falava o que era a droga, quais eram os efeitos esperados e efeitos adversos que poderiam ocorrer, continha recomendações de redução de danos para cada substância, com dicas de cuidado para minimizar os riscos e os danos associados a esse uso. Quando migrei para o YouTube, percebi que tinha uma gama muito maior de possibilidades, porque poderia entrevistar pessoas e inserir elementos que enriqueceriam o conteúdo.
– Você já tem recebido retorno sobre os vídeos? Como lida com os comentários negativos?
– Meu objetivo é fazer vídeos para os usuários de drogas, eu falo para eles. Mas muitos profissionais de saúde e de assistência que atuam na questão das drogas vêm conversar comigo para dizer que o canal está ajudando muito. Os vídeos também estão sendo baixados do YouTube para serem usados em serviços de saúde com os usuários, como disparador de conversa. Eles fazem uma reunião, colocam o vídeo e depois abrem para debate com os usuários. Acho que o canal ainda circula muito entre as pessoas que fazem uso de drogas. Tem cerca de 3.500 comentários no canal inteiro e apenas 38 negativos. Mas acredito que, se um dia viralizar um vídeo, vou ter um pouco mais de problema.
– Você toma alguma precaução para não ser acusado de apologia às drogas?
– Os artigos 20 e 22 da Lei 11.343 falam que toda ação que visa à melhoria da qualidade de vida e informação para usuários de droga é redução de danos, então meu trabalho está previsto por lei. Ainda assim, presto muita atenção na forma de falar. Se eu digo “quando você usar droga” no vídeo, isso pode ser interpretado como forma de incentivo. Por isso, busco sempre usar expressões como “se você decidir usar, caso você decida usar”, que é para me resguardar.