Filhos convivem com a ausência e a dor provocadas pelo feminicídio
Tribuna reencontra famílias de Marina, Kacyana, Sthefania e Jomara, quatro vítimas de crimes que marcaram Juiz de Fora e região nos últimos anos
“Nunca mais vou ver a mamãe? Como eu faço agora?” A pergunta que J., 7 anos, fez ao tio logo após a descoberta da morte da mãe expõe o drama das famílias devastadas pela violência doméstica em Juiz de Fora. Vítima do próprio marido, com quem teve três filhos, Marina Gonçalves Cunha, 35 anos, deu o último boa noite às crianças no apartamento do Bairro São Mateus em 21 de maio de 2018. Quando o menino, na época com 6 anos, e as meninas de 5 e 2 anos acordaram no dia seguinte, a psicóloga não estava mais lá para oferecer o beijo que os esperava a cada manhã. A rotina deles foi brutalmente interrompida após o pai, Pedro Araújo Cunha Parreiras, 38 anos, estrangular a mulher, esconder o corpo dela em um carrinho de supermercado e despejá-la em uma mata na região do Parque da Lajinha no início da madrugada de uma terça-feira. Da noite para o dia, J., M. e V. perderam a mãe e o pai, já que o empresário segue preso pelo crime de feminicídio. Sem compreenderem bem a ausência, os filhos de Marina tentam reencontrá-la na memória. “Quando quiser ver sua mãe, feche os olhos, coloque a mão sobre o coração e pense nela”, respondeu o tio de J. O garoto assimilou o conselho imediatamente. Naquele momento, uma lágrima escorreu do rosto da criança.
Levantamento exclusivo realizado pela oficial de apoio judicial e mediadora, Senira Regina Rocha, 60 anos, aponta que, só este ano em Juiz de Fora, 140 homens foram presos em flagrante por causa da violência doméstica. Significa que, a cada um dia e meio, a polícia localiza e detém um agressor. Para tentar entender o complexo fenômeno da violência que nasce entre quatro paredes e é praticada, geralmente, por quem mais se confia, a Tribuna ouviu especialistas, delegados, juízes e, principalmente, familiares de mulheres que não tiveram nenhuma chance de se defender. Também deu voz às sobreviventes de crimes que são cotidianamente praticados e tolerados por uma multiplicidade de fatores que vão desde o medo até a dependência financeira, afetiva e emocional. O jornal entrevistou, ainda, quem desenvolve trabalhos de acompanhamento junto aos agressores e buscou traçar um perfil sobre homens cuja cultura machista e a criação violenta os ensinaram a enxergar o sexo feminino com olhar de posse, desumanizando a mulher. A matéria publicada neste domingo é a primeira parte das reportagens especiais que tratam do tema.
17 casos envolvendo feminicídio no Tribunal do Júri desde 2015
Desde 2015, quando a lei do feminicídio foi aprovada, 17 casos tentados e consumados chegaram ao Tribunal do Júri na Comarca de Juiz de Fora, entre eles o de Marina. Deste total, sete já foram julgados, resultando em cinco condenações. Um foi impronunciado – quando não há comprovação da autoria – e outro recebeu medida de segurança por ter sido o autor considerado inimputável, sendo encaminhado para o manicômio judiciário em Barbacena. Outros dez seguem em tramitação. A delegada de Mulheres, Ângela Fellet, explica que o feminicídio é um homicídio qualificado, ou seja, tem pena mais alta, por ser crime hediondo. “O feminicídio entrou no Código Penal como uma das outras qualificadoras do homicídio em 9 de março de 2015. Existe para proteger ainda mais a mulher, para que a pena tenha um caráter inibidor. No feminicídio, o agressor usa da condição de vulnerabilidade da mulher, do sexo feminino, para cometer a violência”, explica.
O caso de Marina, por exemplo, ainda aguarda pronúncia, ou seja, a denúncia de feminicídio foi acatada, mas ainda não foi definido se o réu vai a júri popular. Enquanto o destino de Pedro Parreiras, preso preventivamente, está nas mãos da Justiça, a família da psicóloga tenta se organizar em um mundo sem Marina. Desde que a única filha mulher foi assassinada, a artista plástica Marlene Gonçalves da Cunha, 62 anos, está com a guarda dos três netos, atualmente com 7, 6 e 3 anos. J., o primogênito, ainda vai passar por exame psicossocial a pedido da Justiça para comprovar a denúncia do Ministério Público de que ele presenciou a morte da mãe dentro de casa. “Marcamos psicóloga no dia seguinte (à descoberta do crime). Fomos orientados a contar para eles logo, porque a escola inteira já estava sabendo.”
Segundo ela, a ideia inicial era uma história com marionetes, mas nem tudo saiu como planejado. Além do apoio do marido e do filho, a avó conta com a presença da irmã que morava no Rio de Janeiro. “Ela está comigo me dando uma força. É muita responsabilidade. A morte da Marina teve uma consequência muito grande. Acabou com a vida de todo mundo”, comenta a mãe da psicóloga. Em 19 de junho, quando Marina completaria 36 anos, a família preparou uma festa de aniversário em homenagem a ela. “As crianças passaram o dia desenhando”, contou a avó. Balões e cartazes com mensagens de amor à mãe contornaram a mesa do bolo, enfeitada com flores e fotos da psicóloga. “Eu achava que tinha sido uma mãe perfeita, mas não cheguei aos pés da Marina. Ela teve pressa em ter filhos, parece que pressentia. Eles choram à noite com saudade.”
Encontro com o pai
Uma semana depois de ser preso, em 7 de junho, o empresário acusado de matar Marina obteve o alvará de soltura concedido em caráter liminar por um desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Logo depois que o habeas corpus foi derrubado pelo próprio TJ, no dia 27 do mesmo mês, Marlene levou os filhos para verem o pai no Campus da UFJF. “Ele seria preso novamente, e a mãe dele ligou implorando para deixá-lo ver os meninos. Quis ser humana, apesar da dor que é muito grande.” As crianças ficaram cerca de uma hora com o pai naquele dia. “O que ele fez não tem justificativa”, diz a avó materna.
No dia em que foi morta, Marina havia acabado de chegar de um curso de coaching em São Paulo, onde ficou uma semana. “Ela estava muito triste, parecia ter chorado. Mas eu achei que era cansaço da viagem. Passou a tarde arrumando a minha mala para ter certeza que eu viajaria com eles para o Rio Grande do Sul (dois dias depois)”, contou a artista plástica.
‘Ela não atendeu’
Após a despedida, elas ainda trocaram algumas mensagens. “Eu fiquei ligando, mas ela não atendeu mais. Depois o Pedro falou que ela tinha saído de casa. Pensei que tinha acontecido uma coisa muito séria com a Marina, porque ela só poderia ter surtado para fazer uma coisa dessas. Não tinha levado bolsa e nem celular. Quando eu já estava saindo para ir à delegacia, ele me ligou dizendo que ela havia ligado.” Sem notícias do paradeiro dela, a família foi ludibriada por 17 dias. Após descobrir a verdade, a mãe passou a refletir sobre o comportamento do genro. “Foi muito bárbaro o que ele fez, muito sangue frio.”
Na última terça-feira (14), Marlene não teve forças para prestar depoimento no Tribunal do Júri durante a audiência do caso. “A gente estava no corredor esperando, aí o Pedro passou, e eu me senti muito mal.”
Sem respostas para os questionamentos infantis
Explicar para as crianças o que nem os adultos conseguem entender não é uma tarefa fácil. “Vó, a mamãe vai poder colocar um bracinho no lugar do outro que foi arrancado, como acontece com as bonecas?” A pergunta de A., de apenas 4 anos, deixou a faxineira Maria Aparecida Inácia Magalhães sem palavras. Há dois anos, quando a filha Kacyana Magalhães Silveira, 27, foi internada no CTI do Hospital de Pronto Socorro após ser estuprada, espancada e queimada viva, ela ainda não tinha uma resposta para a menina.
Kacyana, porém, não resistiu aos ferimentos provocados pela agressão cometida em 30 de julho de 2016, cuja gravidade chocou uma cidade inteira. Encontrada dentro de uma valeta em uma região do município conhecida como Serra Pelada, ela estava com os pés amarrados com arame farpado, a calça abaixada na altura do joelho, o rosto sangrando e o tórax incinerado com exposição do osso, sendo identificada somente no dia seguinte. “Quando ligaram do HPS para fazer o reconhecimento de uma moça com as características da Kacyana, a gente estava almoçando. Na hora que eu entrei no HPS, as meninas do hospital já viram semelhança entre nós duas, porque, apesar dos ferimentos graves, minha irmã não estava irreconhecível. Quando cheguei na emergência e olhei pelo vidro, eu disse: é ela. Aí veio todo mundo me dar assistência. O médico disse que ela não teria nem 72 horas de vida”, revelou Poliana, 31 anos.
Kacyana, porém, sobreviveu por dois meses. No CTI, ela soube que o autor do crime de feminicídio, Douglas Justino Machado, que foi preso por tráfico de drogas logo após violentar a jovem, já teria sido identificado. Para a polícia, Douglas contou ter agredido Kacyana porque estava “com muita raiva dela”. Disse que, no dia do crime, deu uma carona para ela com a intenção de cobrar o sumiço de uma droga que estaria sendo guardada por ela. Com uma extensa ficha criminal, que vai de roubo a estelionato, ele admitiu ter provocado o traumatismo craniano nela com o capacete de sua moto. Também confessou ter sido o responsável pelo incêndio no corpo dela, embora não saiba explicar porque a queimou, mas negou o estupro. A família de Kacyana diz que ele estava interessado nela e, como ela se relacionava com outro rapaz, isso teria motivado o crime.
Medo
O fato é que as filhas de Kacyana, que atualmente moram com o pai, também foram afetadas pela violência praticada contra a mãe. M., na época com 7 anos, chegou a confidenciar à avó que ela também poderia ter se tornado uma vítima. “Se estivéssemos com a mamãe, tinha acontecido a mesma coisa com a gente, né, vó”? A pergunta é mais uma daquelas que os adultos não sabem responder. A única certeza da mãe de Kacyana é que o fim dela não precisava ter sido dessa forma. “Eu não sei o que é verdade e o que é mentira e nem o que levou aquele homem a fazer aquilo. Se fosse o caso de droga, ele não iria estuprá-la e fazer tudo que fez. Eu sinto muito mesmo. A Kacyana foi uma filha que me deu trabalho, sim, mas não merecia esse fim. Ninguém merece”, lamentou a faxineira Maria Aparecida Inácia Magalhães.
‘Mamãe desmaiada no chão’
Cuidar da neta L. de 4 anos é prioridade na vida da dona de casa Elaine da Silva Parenti, 53. A menina perdeu precocemente a mãe, Sthefania Parenti Ferreira Novaes, 29, assassinada com três tiros no tórax e abdômen disparados pelo ex-marido e pai da criança, o policial militar Gilberto Ferreira Novaes, 35. Além de ver a mãe morta, a menina ainda foi sequestrada pelo pai, aumentando a angústia da família. O homem não estaria aceitando o fim do relacionamento e já vinha importunando a vítima de forma violenta.
O crime ocorrido no dia 14 de abril deste ano, em Santos Dumont, com cerca de 50 mil habitantes, mobilizou a cidade e o país. Após cinco dias em fuga, o militar acabou capturado em Belo Horizonte, quando tentava conseguir documentos falsos, nas proximidades de um shopping popular, no Centro da capital mineira. Ele estava junto da filha, que ficou sob a tutela da PM até a chegada dos familiares.
Quatro meses depois da tragédia, Elaine e a neta aprendem, um pouco a cada dia, a lidar com a dor da perda. “Eu supunha que ela tinha visto, agora tenho certeza. Um dia me mostrou direitinho o lugar onde Sthefania ficou caída e disse: ‘mamãe desmaiada no chão’.” A avó conta que a menina está sendo acompanhada por uma psicóloga do SUS. “Foi minha irmã quem conseguiu, e ela está melhorando. Estamos fazendo de tudo para agradá-la e brincamos muito com ela para não ficar lembrando.”
As marcas da violência já estavam presentes em L. antes mesmo de a mãe morrer. Um vídeo gravado por Sthefania poucos dias antes do assassinato revela que a menina cantava músicas usando como letra os diálogos mantidos dentro de casa durante as ameaças sofridas pela vítima: “Ai, meu Deus, sai de perto de mim/Você só pensa em matar a minha vida/Você quer destruir a minha vida/Você está parecendo um louco/Eu ligo para a polícia, não faça nada comigo”, reproduzia a menina em forma de canção.
Apesar de tentar apagar as impressões de todo aquele horror, Elaine não deixa a pequena esquecer sua mãe. “Dei um celular para ela com a foto das duas juntas, e ela olha sempre que quer. Falo que a mamãe virou uma estrelinha.”
Sthefania também deixou um casal de filhos do primeiro casamento: uma menina de 10 e um garoto de 12 anos. “Eles moravam com o pai, e ela pegou a guarda definitiva da filha duas ou três semanas antes de acontecer essa tragédia”, lamenta Elaine. “A menina vem brincar com a irmã nos finais de semana, mas o menino prefere não vir. Ele chorou muito.”
A avó atualmente se divide entre sua casa alugada e a residência da filha, onde tudo aconteceu, no Bairro Córrego do Ouro. Ela sabe que os netos mais velhos compreendem o ocorrido, mas vive as dúvidas sobre qual a melhor forma de tratar a questão com a caçula. “Não sabemos como lidar”, desabafa.
Lei só no papel
Apesar dos enormes avanços da Lei Maria da Penha, sancionada há 12 anos, Elaine da Silva Parenti acredita que, na prática, a norma não teve a eficiência que deveria. “Uma porta ficou marcada com um soco que ele deu. Eu vivia falando com minha filha, e ela achava que ele ia melhorar. Mas tornou a fazer de novo.” A vítima chegou a registrar, pelo menos, quatro boletins de ocorrência contra o ex-companheiro. Em novembro de 2017, ele foi preso após usar a pistola ponto 40 de serviço para ameaçar a ex-mulher. Em fevereiro, houve nova ameaça, mas conseguiu fugir. No mês seguinte, a vítima registrou boletim por agressão após ter sido puxada pelo braço em um desentendimento relacionado à criança. Já no início de abril, a vítima registrou BO de perturbação via telefone.
Saber que não vou te ver mais
Às vezes me dá um desespero tão grande
Te tocar, ouvir você
Mamãe sente muito sua falta
Só Deus para saber o que eu e seu pai estamos passando
Cada dia que passa minha tristeza é maior
Falta um pedacinho de mimElaine da Silva Parenti, 53 anos, mãe de Sthefania, assassinada em abril pelo ex-marido, aos 29 anos
“Fizemos tudo direitinho, mas acho que houve descaso. Ela chegou a ficar com o corpo todo roxo, e não fizeram nada. Só por que ele era policial? Isso revolta a gente. Se a lei fosse cumprida, ele ficaria com medo, e isso não teria acontecido. Minha filha poderia estar viva”, diz Elaine, acrescentando que tanto Sthefania quanto os avós possuíam medidas protetivas. “Naquela noite, iria ficar com ela, mas depois me disse que não precisava. Se eu estivesse lá, teria me matado também porque, com certeza, eu iria entrar na frente dela. Era minha única filha. Emagreci muito desde que ela morreu. Não me conformo. Que lei é essa? A mulher só está protegida no papel. São muitas perguntas sem respostas.”
O militar segue preso em um Batalhão da PM em Contagem (MG), enquanto corre o processo. Se ele for excluído da corporação, passará à custódia da Justiça Comum. Ainda não há data para o julgamento do crime de feminicídio. Segundo informações do TJMG, também estão em andamento outros dois processos em que Gilberto aparece como autor, e Sthefania como vítima: um de ameaça e outro de lesão corporal decorrente de violência doméstica.
‘O cerne da violência é o machismo’
Desde abril, o descumprimento das medidas protetivas de urgência resulta na prisão do agressor. A mudança em artigo da Lei Maria da Penha é mais uma forma de tentar proteger a mulher. Para a titular da delegacia especializada, Ângela Fellet, as medidas protetivas são eficientes sim e o que houve de mais inovador na norma. “O mero descumprimento da medida protetiva passou a ser considerado crime. Se o agressor não for pego em flagrante, instauro inquérito por descumprimento das medidas protetivas para, depois, indiciá-lo”, explica Ângela, que vê na violência doméstica um ciclo vicioso. “Todas nós, de qualquer classe social, já fomos vítima de violência doméstica, porque a partir do momento que um namorado impede que a gente use uma determinada roupa, que vá a determinado lugar, que saia sozinha com as amigas, isso é violência psicológica, ele está de certa forma te dominando, o que não acontece ao contrário. Eu, como Delegada de Mulheres, afirmo já ter sido vítima de violência psicológica diversas vezes em relacionamentos anteriores. Primeiro a vítima começa a sofrer agressões verbais, violência psicológica e, se a vítima cede, passa-se depois para as agressões morais – xingamentos, humilhações -, e aí a violência vai crescendo para a violência física e sexual, porque, mesmo casada, não existe obrigação de a mulher ter relação sexual com o marido se ela não quiser. Cabe mesmo delito de estupro nesse caso. Então passa para as agressões físicas, sexuais, podendo chegar até a morte”, afirma a delegada.
“(…) muitos homens olham a mulher como um ser inferior ou se sentem donos dela”
Ângela Fellet, delegada de Mulheres
Para ela, o problema atinge todas as classes sociais, sendo mais visível entre classes menos favorecidas por causa da dependência financeira. A dependência emocional, no entanto, também está presente, além do medo de perder a guarda dos filhos ou de fazer com que eles sofram diante de uma separação. “Tem ainda a crença que o homem vai mudar, porque o marido agride, depois tem a fase do arrependimento, do perdão, ela perdoa, ele acha que vai ser sempre assim, aí age uma segunda vez. O alcoolismo e as drogas são outro problema e grandes fatores para os agressores. A gente não está lidando apenas com uma questão de segurança, mas de saúde pública. O machismo também está presente, porque muitos homens olham a mulher como um ser inferior ou se sentem donos dela.”
Senira Regina Rocha, oficial de apoio judicial e mediadora, lembra que é preciso um olhar multiprofissional para lidar com violência doméstica. “Não é um crime comum. Na grande massa da violência doméstica você está lidando com relacionamentos, com famílias, com homens que aprenderam a ser violentos no correr de toda a vida. O cerne da violência é o machismo. Desde pequenininha te ensinam que o seu irmãozinho pode jogar bola e você tem que cuidar de boneca, arrumar e limpar a casa. A gente ainda não conseguiu mudar nem a visão das empresas que não pagam as mulheres o mesmo que os homens. E aí tem um candidato a Presidência da República que diz que as mulheres têm que ganhar menos mesmo. Acho que vai levar gerações pra gente começar a ver mudança nesse tipo de coisa.”
Filhas esperaram 9 anos por condenação de pai
O ano era 2009: às vésperas do Réveillon, L. e C., de 10 e 12 anos, viram a mãe ferida, ensanguentada no corredor de acesso à residência onde moravam, na Avenida Olegário Maciel, no Bairro Paineiras, região central. O comerciante Marcos André Canavellas Pereira, 49, inconformado com o pedido de separação, atacou a mulher e mãe de suas duas filhas com arma branca, causando, pelo menos, seis perfurações cortantes. A vendedora Jomara Amaral tinha 38 anos e muitos planos pela frente, como passar a virada daquele ano em Cabo Frio (RJ) com as meninas. Mas sua vontade de viver não superou a violência que sofreu. .
“Foi muito difícil para todo mundo. Eu estava em Cabo Frio e até desmaiei na praia. Tive que vir embora às pressas. Minha mãe criou as meninas, mas até hoje não sabemos como ficou a cabeça delas, porque é um assunto que não gostam de comentar. A C. fez 20 anos e cursa engenharia. A L., de 18, não está estudando. Acho que foi a mais afetada. Ela era muito grudada na Jomara”, conta a irmã da vítima, a despachante Denise Amaral, 49 anos.
Na época do crime, ainda não estava em vigor a lei do feminicídio. A dor da família foi agravada pela sensação de impunidade, já que Marcos permaneceu solto por quase nove anos, até ser condenado a 22 anos de prisão no último dia 17 de julho, quando saiu preso do Tribunal do Júri. “Após a condenação, as filhas disseram só que ele teve o que mereceu e que agora teria que pagar”, explica Denise.
Trauma
Da mesma faixa etária que as filhas de Jomara, a sobrinha da vítima e estudante de direito, Juliana Amaral, 21, viveu o trauma junto com as primas, que foram morar na mesma casa que ela, até o falecimento da avó, no final do ano passado. “Minha vó morreu sem ver a justiça ser feita, mas acreditava na justiça divina. Graças a Deus agora tivemos esse alívio com a condenação. Mas o assassinato da minha tia acabou com a vida da minha vó também. Ela já era velhinha e teve a responsabilidade de acabar de criar as meninas”, desabafa Juliana.
Também com 12 anos na época, a estudante lembra ter ficado “espantada” com o homicídio da tia. “Foi um choque para mim. Ela era minha segunda mãe. A C. me contou que a última coisa que a mãe falou quando estava caída no chão foi que, independente do que acontecesse, amava muito elas.” Para Juliana, o tempo de espera pela prisão aumentou a ferida. “L. nunca teve contato, sempre morreu de medo do pai. A C. tentou conviver com ele por um tempo, mas depois tomou ódio dele. Cresceram sem os dois. Nem quiseram ir ao julgamento. Ainda é uma dor muito grande para elas.”
Maior conscientização
Integrante do coletivo feminino Maria Maria, Laiz Perrut, 27 anos, pontua que casos de feminicídio estão vindo mais à tona e ganhando repercussão porque antes eram tratados como homicídios comuns. “Isso chega na sociedade e cria mais conscientização. A violência sempre aconteceu, mas os esclarecimentos estão contribuindo para as mulheres se sentirem mais seguras. O julgamento da Jomara demorou, mas teve uma condenação. Ele matou, foi preso e vai responder. Não vai ficar por isso mesmo.”
A militante destaca que, embora o agressor mire a vida da mulher, acaba impactando de forma profunda muita gente em volta, sobretudo as crianças que ficam. “Quando acontece um crime desse, toda a família sai prejudicada. Os filhos perdem a mãe, que foi morta, e o pai, que foi o assassino. Tanto no caso da Jomara, quanto no da Marina, os filhos passaram a ser criados pela avós. É um trauma muito grande para essas crianças, porque a mãe morreu praticamente na frente delas.”