‘A imagem é um direito da criança, não uma propriedade dos pais’: caso Hytalo Santos reacende debate sobre adultização e exposição infantil nas redes

Prisão de influenciador e vídeo que viralizou reacendem debate sobre adultização on-line e responsabilidades legais


Por Mariana Souza*

17/08/2025 às 06h00

Recentemente, o youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, publicou um vídeo nas redes sociais denunciando a adultização – termo usado para definir a superexposição ou exploração de crianças e adolescentes na internet como se fossem adultos. Na gravação, ele apontou condutas e conteúdos de influenciadores que buscam viralização e lucro a partir da imagem de menores.

Entre os casos citados está o do influenciador Hytalo Santos, investigado pelo Ministério Público da Paraíba (MPPB) desde 2024 por possível exploração de menores. Hytalo foi preso na sexta-feira (15). O vídeo de Felca, que já ultrapassa 35 milhões de visualizações, voltou a colocar o tema em evidência no país.

Antes de ter sua conta no Instagram desativada, Hytalo reunia mais de 17 milhões de seguidores na plataforma, 2,4 milhões no TikTok e mais de 5 milhões no YouTube. Em seus vídeos, era comum a presença de menores, tratados por ele como “filhas” e “genros”. Segundo Felca, ele retirava essas crianças e adolescentes de suas cidades, afastando-as das famílias para viverem em um “circo macabro” – expressão usada pelo youtuber. Os pais, por sua vez, eram retratados como incentivadores da exposição, enxergando nela uma oportunidade de monetização.

Um dos exemplos citados é o de Kamyla Santos, que entrou no grupo de Hytalo aos 12 anos e permaneceu até os 17, passando toda a pré-adolescência e adolescência nesse ambiente. Felca afirma que ela teve sua imagem explorada para gerar lucro, inclusive em conteúdos com conotação sexual. Por determinação do Ministério Público, o perfil de Kamyla também foi removido.

A denúncia impulsionou o debate em Brasília. O presidente da Câmara, Hugo Motta, classificou o tema como “urgente” e prometeu priorizá-lo na agenda legislativa. Em resposta à repercussão, foram apresentados 32 novos projetos de lei na Câmara dos Deputados em poucos dias. Essas propostas visam a prevenir e combater exposição indevida, adultização e exploração sexual on-line. Os projetos têm o apoio de deputados de diversas orientações políticas.

Algoritmo e a nova escala da adultização

Embora a adultização seja um fenômeno histórico, a internet ampliou sua escala e acelerou seu alcance de forma alarmante. A grande diferença está na monetização direta: likes, visualizações e patrocínios funcionam como combustível para conteúdos cada vez mais apelativos e, muitas vezes, inapropriados.

A doutora em Psicologia Social e psicóloga clínica com especialização em Prática Baseada em Evidências, Adriana Woichinevski Viscardi, alerta que curtidas funcionam como recompensas químicas no cérebro, reforçando comportamentos de exposição e validando a pseudo-maturidade – uma encenação de papéis adultos sem compreensão real. “O risco é a família virar uma empresa, em que o produto é a criança”, diz.

Nesse cenário, o chamado “Algoritmo P” exerce um papel central. Ao priorizar o engajamento, as plataformas acabam recomendando e impulsionando vídeos que, apesar de parecerem inocentes, expõem crianças de forma sugestiva – material que pode ter apelo sexual disfarçado para um público mal-intencionado.

Um estudo da Universidade de Boston analisou dados fornecidos por usuários – obtidos via Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia – para entender o funcionamento do algoritmo do TikTok. Esses dados foram comparados com vídeos recomendados a contas automatizadas (bots) que simulavam pessoas reais e outras que navegavam aleatoriamente. Os pesquisadores classificaram os conteúdos recomendados como “exploradores” (voltados a reforçar interesses já demonstrados) e “exploratórios” (destinados a apresentar novos temas).

De acordo com as conclusões, entre 30% e 50% dos primeiros mil vídeos mostrados a um usuário exploram interesses anteriores, levando em conta principalmente curtidas e perfis seguidos. O tempo assistido de cada vídeo tem peso menor. A preocupação é que, dessa forma, conteúdos inapropriados possam chegar a terceiros com outros interesses — inclusive criminosos.

O que cabe aos pais e às plataformas

Para a advogada especialista em direito digital e proteção de dados, Bruna Oliveira, identificar esses criminosos é um desafio. “O ambiente digital é, ao mesmo tempo, global e extremamente dinâmico. Criminosos usam códigos, gírias, GIFs e hashtags ambíguas para driblar a moderação automática e explorar falhas nos algoritmos, criando ‘bolhas’ de circulação de conteúdo ilícito. Nelas, o material é amplamente compartilhado, mas permanece invisível para quem está fora desse círculo”, explica.

Segundo ela, as provas costumam estar em metadados – informações escondidas nos arquivos, como data, hora, local e dispositivo de origem – e nos registros de conexão (logs), que as plataformas só fornecem mediante ordem judicial, conforme o Marco Civil da Internet. Capturas de tela e gravações também são essenciais, mas precisam ser preservadas de forma a garantir autenticidade, muitas vezes por meio de atas notariais ou serviços de verificação on-line.

Na outra ponta, há o sharenting – junção de “share” (compartilhar) e “parenting” (criar). Trata-se da exposição de fotos e vídeos de filhos por pais e responsáveis. Mesmo conteúdos aparentemente inocentes podem revelar dados pessoais ou serem usados de forma criminosa. Segundo Adriana, além da violação da privacidade, o sharenting cria uma “pegada digital” permanente, que a criança não solicitou e não controla.

A advogada especialista em Vara da Família, Ticiana Drives, reforça que essa prática pode gerar responsabilização civil e até penal, dependendo do teor do conteúdo e de seus efeitos. O que, à primeira vista, pode parecer apenas uma forma de guardar memórias ou mostrar momentos de carinho pode se transformar em um perigo oculto, com consequências que muitas vezes os próprios responsáveis não preveem.

Bruna acrescenta que a Constituição parte do princípio de que “os pais, no exercício do poder familiar, administram os bens e interesses dos filhos. Isso inclui, em tese, o direito de imagem”. Ela ressalta, porém, que “o poder familiar não é absoluto; deve ser exercido sempre visando ao melhor interesse da criança, conforme determina a Constituição e o ECA. Publicar fotos em contextos que possam gerar constrangimento futuro, expor a intimidade de forma excessiva ou colocar a criança em risco – divulgando localização, escola, entre outros – pode ser considerado um abuso desse poder”.

A advogada aponta ainda que a responsabilidade não recai apenas sobre os pais. “Juridicamente, as plataformas têm o dever de implementar mecanismos de verificação de idade mais robustos do que a simples autodeclaração, que é a prática mais comum e geralmente falha. Plataformas como a Meta afirmam que a idade mínima é de 13 anos, e que usam inteligência artificial e verificação por vídeo, mas a eficácia prática dessas medidas não é confiável. A presença de usuários abaixo da idade mínima permanece comum, evidenciando a fragilidade dos controles”, afirma.

Adultização no cotidiano e seus impactos

A longo prazo, segundo Adriana, essa exposição precoce pode resultar em erotização da infância, naturalização de comportamentos abusivos e vulnerabilidade emocional. “Crianças e adolescentes aprendem a medir seu valor pelas curtidas e seguidores, em vez de suas próprias experiências e sentimentos, gerando ansiedade, insegurança e dificultando a construção de uma identidade saudável e autônoma.”

“Não demora muito para a criança passar a ser percebida como produto ou ‘marca’ a ser vendida, e não como sujeito com desenvolvimento emocional protegido. E logo o desejo por monetização e números transforma a dinâmica familiar em um ciclo de recompensa, pressão social e racionalização, em que a criança é vista como meio para engajamento.”

Para além das telas, a adultização também é alimentada por comportamentos cotidianos, muitas vezes incentivados dentro de casa. Comentários sobre aparência, escolha de roupas que imitam tendências adultas e incentivo para “fazer graça” diante de câmeras em poses ou danças sexualizadas são exemplos comuns. Plataformas como TikTok e Instagram potencializam esse processo por meio de desafios virais e conteúdos musicais que, apesar de populares, carregam letras ou coreografias com conotação adulta.

A psicóloga define esse fenômeno como “adultização performática” – a imitação de comportamentos adultos sem compreensão real de seu significado ou implicações. Para ela, essa pseudo-maturidade pode gerar estresse por expectativas, acelerar a perda da vivência lúdica e prejudicar o desenvolvimento emocional. “A relação com a família se tensiona, a percepção do próprio corpo e a autoestima se fragilizam, e a capacidade de estabelecer limites seguros é comprometida”, afirma.

Ela explica que esse comportamento reflete as atitudes dos mais velhos e influencia diretamente a forma como a criança percebe a própria infância. “Quando assumem papéis adultos, na maioria das vezes as crianças estão apenas reproduzindo comportamentos observados, sem internalizá-los de fato. Chamamos isso de ‘adultização performática’ – uma pseudo-maturidade, fruto da imitação social em busca de reconhecimento, e não do domínio real do conteúdo ou da compreensão de suas implicações”, reforça.

Segundo Adriana, muitos pais justificam a prática dizendo que a criança gosta, se diverte ou que é “apenas educativo” ou “brincadeira”. “Às vezes até começa assim, mas rapidamente escala. Assim como acontece com adolescentes, adultos também recebem reforço dopaminérgico ao obter curtidas, visualizações e comentários positivos nas redes. Essa recompensa imediata condiciona os pais a criar mais conteúdo que gere engajamento, mesmo que isso envolva situações desconfortáveis ou inadequadas para a criança”, completa.

Para Bruna, a exposição de crianças nas redes sociais deve ser avaliada com base no impacto que pode gerar sobre elas. “As melhores práticas unem o aspecto jurídico à segurança digital. É preciso compreender que a imagem é um direito da criança, não propriedade dos pais. O compartilhamento deve ter como objetivo a celebração familiar, e não a busca por engajamento ou status. O que é publicado hoje pode influenciar o futuro social e profissional do seu filho”, afirma.

A advogada destaca que algumas boas práticas podem ajudar a proteger a privacidade das crianças tanto em casa quanto nas escolas. Entre elas, estão desativar a geolocalização das fotos, evitar mostrar uniformes escolares ou a fachada de casa e cobrir ou desfocar o rosto de outras crianças cujos pais não autorizaram a postagem. Ela também recomenda manter o perfil fechado, revisar periodicamente a lista de seguidores e sempre refletir antes de publicar: “Meu filho se orgulharia ou se envergonharia desta foto daqui a 10 anos?”. Para a especialista, essa pergunta é o melhor filtro para decidir o que compartilhar.

Educação digital: limites, diálogo e presença

Se a justificativa para a exposição for o desejo dos filhos de participar, Adriana reforça que cabe aos responsáveis orientar e conduzir a situação. “A primeira regra é simples: quem define os limites são os pais – não os algoritmos nem a pressão social. É preciso deixar claro que a internet não é um ‘território neutro’, mas um espaço potencialmente malicioso, no qual crianças não têm maturidade para identificar riscos.”

A psicóloga recomenda estabelecer regras claras desde cedo, como horários de uso, ambientes livres de telas – por exemplo, durante as refeições ou no quarto na hora de dormir – e supervisão ativa do que é assistido ou publicado. Para crianças menores, vale produzir conteúdo junto ou assistir aos vídeos em família, o que permite explicar imediatamente o que é apropriado ou não. Também é possível restringir perfis para reduzir riscos.

Quando houver resistência ou desejo de fama, a especialista orienta que não basta dizer “não”: é necessário explicar o motivo, mostrar riscos reais de exposição e oferecer alternativas, como incentivar talentos, projetos offline e formas seguras de criar. Ela ressalta ainda a importância de ensinar que curtidas não definem valor pessoal, explicando como funcionam as redes, a lógica dos algoritmos e da monetização, por que conteúdos chamativos — muitas vezes inadequados – ganham visibilidade e alertando sobre padrões corporais irreais, a diferença entre vida real e vida postada, pedofilia e outros perigos.

Caso a insistência persista, Adriana recomenda manter a consistência: validar os sentimentos da criança (“eu sei que você quer muito isso”), mas reforçar o papel protetor dos pais (“não vou permitir algo que te prejudique”). Ferramentas de bloqueio e controle de tempo podem ser usadas como apoio, mas nunca substituir o diálogo.

Por fim, ela enfatiza que o exemplo dos adultos é determinante. “Se os pais passam o dia conectados ou expõem demais a própria vida, a mensagem é contraditória. Crianças aprendem mais com o que veem do que com o que ouvem.”

Na sua opinião, a fórmula é clara: “limites firmes, diálogo constante e presença ativa. Isso não só protege no presente, mas ensina a criança a lidar de forma saudável com o mundo digital no futuro.”

*estagiária sob supervisão da editora Fabíola Costa

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