‘Bonito é o que João faz por mim’
O próprio rio Paraibuna narra a relação de afeto e cuidado com seu guardião, João Alberto Campos de Abreu, que há décadas preserva o milagre da água que brota na Fazenda Campinho.
Eu nasço aqui, num sopro tímido de água que brota da terra escura, num refúgio de Mata Atlântica. Sou o Rio Paraibuna. Pequenino quando apareço, quase invisível, existo por um fio, mas com destino de atravessar vales, cidades, escrever e contar histórias. Nasço na Serra da Mantiqueira, no município de Antônio Carlos, a 1.180 metros de altitude, e recebo a força de afluentes como o Rio do Peixe, o Cágado e o Rio Preto, até desaguar no Rio Paraíba do Sul, em Três Rios, em território fluminense.
No meu caminho, abraço e alimento as cidades de Antônio Carlos, Santos Dumont, Ewbank da Câmara, Matias Barbosa, Simão Pereira, Belmiro Braga, Santana do Deserto, Chiador e Juiz de Fora, a maior parte do meu percurso, cerca de 70%. Ao longo do meu vale, já se abriram estradas que moldaram a história de Minas Gerais — o Caminho Novo das Minas (1707), a Estrada União e Indústria (1856) e a Estrada de Ferro Central do Brasil.
E, hoje, tenho um guardião.

O nome dele é João Alberto Campos de Abreu. Aos 82 anos, corpo ágil e mente lúcida, ele conhece cada pedra, cada curva e cada sombra que me abriga. Foi ele quem, com passos firmes, liderou essa “expedição” até minha nascente mais alta, na sua Fazenda Campinho, em Antônio Carlos, na divisa com Bias Fortes e Santa Rita de Ibitipoca. A propriedade, adquirida pelo pai dele em 1947, abriga cinco nascentes que me dão vida e se estende por 55,35 hectares cercada de Mata Atlântica preservada onde é produzido milho e há também manejo de gado.
Naquele dia, João recebeu os visitantes como sempre faz com o coração agradecido e pronto para compartilhar seu tesouro. Não faltou a tradicional hospitalidade mineira: café fresquinho e quitandas, antes de seguir conduzindo o grupo de visitantes pelas minhas trilhas. Caminho que ele percorre como um menino curioso, desviando raízes e galhos, e repetindo com brilho nos olhos:
— O que vocês estão achando disso tudo? Não é bonito?
Na casa antiga, cercada de histórias e memórias de família celebradas em fotos, no mobiliário simples, no assoalho de madeira que range, nos quadros religiosos que evidenciam a forte devoção Mariana, ele logo se apressa em apresentar mapas da propriedade com a localização exata das minhas nascentes, recortes de jornal, artigos e revistas sobre mim e, com carinho especial, um tesouro recente: cartas coloridas repletas de afeto escritas por alunos do 5º ano da Paineira Escola Waldorf, de Juiz de Fora.

Eles me visitaram em maio. Muitos nunca haviam entrado numa mata. Descobriram que o rio volumoso que corta a cidade deles começa assim, frágil e silencioso. Foi aventura para eles, alegria para mim — e uma felicidade sem fim para o João. A professora Cyntia escreveu “a vivência de conhecer o senhor, a sua casa e a nascente foram riquíssimas e muito especiais para mim e meus alunos. Eles voltaram extasiados, animados, felizes, com o coração e a alma cheios de amor. O senhor nos proporcionou uma manhã inesquecível, uma experiência que vamos levar para a nossa vida”.
— Foi um momento muito especial— contou ele.
Sempre foi desejo meu e do João proteger as minhas nascentes isolando-as da intervenção direta humana e da ação de animais, principalmente o pisotear do gado, mas faltavam recursos para uma medida mais concreta e efetiva. Muitas vezes presenciei a angústia do meu guardião em busca de apoio institucional. Mas, como dizem por aí: água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Enfim, aconteceu.

Em 5 de julho de 2019, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) realizou aqui o cercamento das minhas nascentes e o plantio de 80 mudas de espécies nativas como Cutieira, Araçá, Quaresmeira Roxa, Palmito, Jerivá, Aroeira, Magnólia, Pau Doce, Pau Viola, Ingá, Jequitá e Ipê Amarelo. O material para cercamento veio de uma parceria entre o Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos e um banco alemão de desenvolvimento, pelo Projeto de Proteção da Mata Atlântica.
Naquele dia, João deixou registrado em palavras o que sente por mim:
“Nos dias atuais em que a preservação da natureza tem constituído uma preocupação de toda a humanidade, a descoberta das nascentes do rio Paraibuna representa uma ocasião sublime de reflexão e de tomada de atitude frente à nossa responsabilidade de preservar os cursos d’água, de toda a espécie de devastação. Ao criar a Terra, Deus colocou à disposição do homem a natureza com todas as suas maravilhas, permitindo-lhe desvendar os seus mistérios, explorá-los, usá-los, amá-los e conquistá-los”

Cuidar de uma nascente para ele é um gesto de futuro — um pacto silencioso entre o homem e a água. Porque todo rio começa num ponto que cabe na palma da mão. E se esse ponto se perde, perde-se também o caminho até o mar.
Hoje, João vive na vizinha cidade de Barbacena, pelas comodidades e onde faz tratamento de saúde. Mas sempre retorna aqui porque sabe que, nestes tempos de mudanças climáticas, cuidar de mim é cuidar de todos que dependem das minhas águas.
E enquanto houver fôlego em seus passos, continuará conduzindo visitantes até meu berço, repetindo a cada parada:
— Não é bonito?
E eu, correndo entre pedras, folhas, galhos e raízes, respondo em silêncio: bonito, João, é o que você faz por mim.
Pelas curvas da estrada, o caminho até a nascente

Partindo de Juiz de Fora, é preciso seguir pela BR-267 em direção a Lima Duarte até alcançar o distrito de Orvalho, onde há a conexão com a MG-135, estrada que leva até Antônio Carlos e à Fazenda Campinho. São aproximadamente 90 quilômetros que revelam a beleza e a simplicidade do interior mineiro.
Aos poucos, a paisagem urbana vai dando lugar a sítios e pequenas propriedades rurais, emolduradas por montanhas e vales. No distrito de Orvalho, a entrada para a MG-135 abre o caminho para uma estrada que serpenteia entre pequenas cidades e vilarejos, como Pedro Teixeira e Bias Fortes, com suas igrejas modestas, praças tranquilas e o ritmo sereno da vida local.
O curto trecho de terra batida está bem conservado. No caminho, encontramos trabalhadores que calçavam a estrada com blocos de concreto, uma iniciativa que facilita a drenagem e mantém o trajeto seguro mesmo nas chuvas.
Ao longo do percurso, pequenos córregos, pontes e riachos cortam o caminho. A subida se acentua abrindo espaço para um espetáculo natural: o mar de morros verdes que se estende até onde a vista alcança. A serenidade do lugar e o ar puro da montanha fazem o viajante desacelerar e se conectar com a paz do interior. E logo ali, bem de frente para a estrada, está a casa em estilo colonial que marca a chegada na Fazenda Campinho. Alegre-se ao avistar o senhor João Alberto na escada de acesso à casa. É um convite a mergulhar no seu baú de memórias e conhecer de pertinho o tesouro que essa terra não esconde, mas preserva: as nascentes do Paraibuna.
ESPECIAL
“O Rio da Minha Aldeia”
Quando o rio fala, as cidades escutam.
Com nome inspirado no poema de Alberto Caeiro, em “O Guardador de Rebanhos”, o projeto jornalístico da Rede Tribuna de Comunicação revela as nuances do Rio Paraibuna como um ser vivo, pulsante, ancestral e presente. Um rio que não apenas corta cidades, mas molda e cria modos e sistemas de vida em sociedade. Por meio de olhares técnicos, humanos e sensoriais, a narrativa de “O Rio da Minha Aldeia” busca reconectar o público ao manancial de forma afetiva e efetiva.