Furnas: entre a imponência da Usina e a calmaria de Nina
Usina que originou Mar de Minas é aberta para visitação da Tribuna, assim como espaço de artes na madeira e cerâmica a poucos metros de distância
O Mar de Minas nasceu por ordem de Juscelino Kubitschek. No mote dos 50 anos em 5, um dos esforços foi direcionado ao aumento das indústrias de base. Com isso, aumentou também o consumo de energia elétrica, e foi criada a Usina Hidrelétrica de Furnas.
A dimensão do local – assim como tudo na região da Serra da Canastra – assusta, positivamente. Chegando lá, a eletricidade que corre acima da cabeça, nas dezenas de torres e centenas de fios é audível. Mais alto é o som das águas, de 40 metros de profundidade, que, em sua menor vazão, já alertam para o perigo e o respeito que impõem – além, é claro, de diversos painéis energizados que requerem a atenção do visitante.
Na maior geração, quando vem a ordem do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), com listagens passadas para diversas usinas de todo o país, geralmente a cada 15 minutos, a água se mostra completamente revolta, com grandes e hipnotizantes redemoinhos. A geração maior não significa, necessariamente, que aumentou o consumo, mas sim que alguma outra usina pelo país desligou uma máquina, por exemplo.

Para a terceira matéria da série Tribuna por Minas, a equipe de reportagem esteve no local de forma exclusiva, já que a visitação, normalmente, não é aberta para o público em geral. “Nós estamos no sudoeste de Minas Gerais, entre duas cidades. No momento, estamos em São João Batista do Glória. Se a gente atravessar a ponte, estaremos em São José da Barra. Aqui, antes, nada mais era do que duas montanhas. O riozinho que passava no meio, no caso, o rio passava onde é a nossa subestação, foi desviado para a construção da usina”, conta Stephanie Driessen Van Dijk, responsável pela visita.
“A construção da usina de Furnas teve expressivo impacto nos municípios na área do reservatório, que atingiu trinta e dois dos 117 municípios mineiros então existentes, prevendo-se que 8% de sua área total seriam inundados, correspondentes a 1,4 mil quilômetros quadrados”, ensinam as historiadoras Maria Letícia Corrêa e Dilma Andrade de Paula, em seu trabalho “Hidrelétricas e Desenvolvimento no Brasil: A Construção da Usina de Furnas em Perspectiva Histórica (1956-1965)”.
“O empreendimento afetou diretamente cerca de trinta e cinco mil pessoas, residentes em moradias dentro da linha d’água em cerca de 8.100 propriedades rurais. Um quarto dessa população (ou nove mil pessoas) teve de deixar suas propriedades”, prossegue o estudo.
O reservatório, com perímetro de 3,5 mil quilômetros, começou a ser enchido em 1961, e o processo demorou dois anos. Ele é composto por dois grandes rios, o Sapucaí, com 190 quilômetros de extensão, e o Rio Grande, com 220. O reservatório abrange 34 cidades lindeiras, com uma população estimada em um milhão de habitantes.
Stephanie conta que muitas pessoas que moravam na área não acreditaram que a água inundaria suas casas e, por isso, se recusavam a deixá-las. Conta-se histórias de que alguns dos moradores, assustados e sem saberem o que fazer, quando o inevitável chegou, começaram a dar tiros na água.
Furnas é, inclusive, o nome do bairro de São José da Barra – a 507 quilômetros de Juiz de Fora – em que a usina está localizada. O município, de apenas 29 anos, foi criado por pessoas que tiveram as casas alagadas. Havia até mesmo um bairro para engenheiros e outro para operários da usina, no início.
Como funciona a Usina de Furnas?

Inicialmente, a Usina de Furnas foi criada para abastecer os três centros socioeconômicos da época: Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. “Hoje, nossa rede elétrica é um sistema interligado, nós temos uma malha elétrica”, explica Stephanie. “Eu comparo como se fosse um balde, onde todo mundo que gera joga lá, e todo mundo que consome retira de lá. Mas, mesmo assim, nós temos essas linhas de transmissão, que é onde a energia é encaminhada para essa malha.”
A construção foi feita em duas etapas, primeiro as máquinas de 1 a 6, e depois as máquinas 7 e 8. Os maquinários de 1 a 4 geram renda para o Glória, e os de 5 a 8, para São José. Na época, a potência instalada de todo o país era de 3 mil megawatts (MW). Só a usina de Furnas gera 1.216 MW. Ou seja, na época da construção, era responsável por 30% da potência instalada no Brasil (hoje, corresponde a 2%). Foi um salto muito grande para a história do país, na avaliação de Stephanie.
São oito unidades geradoras, oito linhas de transmissão, sete comportas de tomada d’água – que levam a água até o maquinário, à turbina –, e sete comportas de vertedouro. “O vertedouro, eu falo que é o nosso pininho da panela de pressão”, compara Stephanie. “O reservatório que está muito cheio tem o alívio através dele. Quando ele é aberto, a ordem também vem do ONS. Ele regulamenta tanto a geração, quanto os níveis de reservatório”, completa.
Nesse caso, Furnas é a última a abrir o equipamento, por ser a primeira de várias outras usinas abaixo, estando a 768 metros acima do nível do mar. Ela é quem represa a água – por isso é chamada de “caixa d’água do sistema” – enquanto as outras utilizam a água que liberam. O contrário acontece ao fechar o vertedouro.
A turbina da usina é do tipo Francis, e a capacidade do gerador é de 210 mil cavalos. Cada uma das oito máquinas gera a 15 mil volts, e atrás de cada máquina há um transformador elevador, que eleva essa tensão para 345 mil volts, para depois ser transmitida. Só a Usina de Furnas atenderia 23 cidades com 100 mil habitantes. E, por fim, a efeito de comparação, em Itaipu são 20 máquinas. Enquanto cada máquina de Furnas gera 152 MW, em Itaipu, cada máquina gera 700 MW.

Na visita, também foi mostrada a nova sala de controle e a antiga. Antes, era um operador por máquina, divididos em três turnos, com as oito máquinas funcionando 24 horas por dia. Hoje, são apenas três operadores por turno, no total. Isso foi possível graças à modernização dos equipamentos.
Uma sala cheia de botões e alavancas, como aquelas retratadas em filmes, foi substituída por uma com nove monitores comuns e outros quatro de 80 polegadas, cada, em que tudo é controlado – e não pode ser registrada, por conter informações confidenciais. Uma curiosidade é que, ao contrário do que se pode imaginar, na primeira sala, quando uma luz acendia na cor vermelha, indicava energização. O problema era a luz verde.
“Com essa modernização, houve o telecomando. Como nós temos a linha de interligação direta com a Usina Hidrelétrica de Estreito (no município de Pedregulho, em São Paulo) e uma com a Mascarenhas de Moraes (em Delfinópolis), os nossos operadores, daqui, nesse momento, comandam as três usinas”, conta Stephanie.
A calmaria de Nina

Saindo dali, passa-se por uma estradinha de terra em que as árvores parecem grandes pés de algodão. Garças se empoleiram aos montes nos galhos, já que, de um lado, há o imenso lago e, do outro, criadouros de peixes para repovoar as águas.
A poucos metros da imponência da hidrelétrica, há uma calmaria conduzida por muitos sinos dos ventos, plantas e, principalmente, vasos de cerâmica e móveis rústicos. É a Vivenda do Rio, loja de Maria Albina Zero Morais, a Nina, que mora no mesmo local. “A maioria das pessoas, quando entra nesse corredor aqui fala sobre como é tão fresco, tão gostoso, esses sinos ficam tocando o tempo todo, e eles não deixam de ser misteriosos, né?”
Nina já se acostumou com a magnitude do que tem quase no quintal de casa, mas percebe, pela reação das outras pessoas, o significado de tudo aquilo. “E eu valorizo porque esse é o meu perfil. Eu não amanheço, eu resplandeço. Porque eu acordo com esse sol, os passarinhos cantando, fazendo ninhos, as abelhas fazendo mel dentro dessa tora. Esse ritmo da natureza me é muito familiar.”
A mãe dela era florista, então sempre teve uma predileção pelo rústico: “Eu sinto um prazer enorme em pegar uma peça que está destruída, carcomida, fissurada, e transformar em um objeto que possa ir para o hall de um prédio luxuoso e fazer sucesso. E a gente faz esse resgate e procura deixar as marcas do tempo. Porque se ela tem um furo, o mais bonito é a imperfeição. Não é só de perfeição que vivem as pessoas, então é uma forma de se incluir o que é imperfeito também no ser humano. Não é só o bonito que tem valor. Então, nas entrelinhas, a arte tem que acompanhar a vida.”
A natureza também é agregada à arte que há. Nina prioriza o artesanato de fibra natural, a cerâmica, o que não é sintético, “o que não é estéril”. “Então a pessoa realmente encontra aconchego, porque essas peças dão um conforto visual, tátil, térmico”, analisa. A loja tem 20 anos, mas ela – do interior de São Paulo, região de Pedregulho, justamente onde fica a outra usina controlada por Furnas – “está mineira” há 33 anos e garante que vai ficar assim.
Falta investimento, mas grandes empreendimentos aumentam

Foi justamente a usina que a levou para seu lugar, o ex-marido era funcionário. “Quando eu vim para cá, já gostava muito de arte, e comecei a ter conhecimento dos artesãos daqui. Toda pessoa da minha família que chegava, eu levava nos teares, nas pessoas que faziam algum artesanato, e acabei adquirindo muita coisa para mim, inicialmente”, relembra.
Ela fala com muita empolgação sobre o produto do outro, as marcas e os ritmos que ele deixa em uma peça. “Eu consigo enxergar isso, sabe? E, aí, eu inspirei outras pessoas que quiseram. Eu comecei sem a loja, depois eu construí essa parte, depois eu aumentei porque não cabia mais, e fui ampliando.”
Nina conta que muitos visitantes dizem que, às vezes, uma peça nem cabe na casa, mas fazem questão de criar um “espaço mineiro”, especialmente para adquirir. “A gente tem um berço aqui em Minas que trabalha isso há muitas gerações. Então, tem peças muito bonitas que realmente inspiram o turista, inspira até em voltar para buscar depois.”
Ela também é artesã, mas customiza produtos de fornecedores mais do que produz. Tem sete ceramistas, por exemplo, cada um para um perfil de cliente que já conhece. E a loja não é muito movimentada por quem não é habitual. Nina relata uma falta de investimento no local. “Quando eu montei a loja, quando as pessoas viram esse volume aqui, falaram ‘mas só pode ser louca’, porque não tem [público] para isso. Mas eu vislumbrava que o local era tão bonito que um dia seria assim. E, em 20 anos, isso mudou muito vertiginosamente. E agora tem até grandes empreendimentos chegando, isso vem agregar, mas a gente tem medo também de que eles sufoquem os pequenos”, desabafa.
Passam, em média, cinco famílias por dia ou cerca de 40 por semana pela loja. Ela percebe um movimento muito novo de turistas cariocas, que vão conhecer a Serra da Canastra. O perfil dos turistas também está mudando. Antes, costumavam ser excursões bate a volta, que não têm tempo para curtirem a calmaria da loja.
‘A simplicidade é o último grau da sabedoria’
Morar em Furnas é “outra vida”. A paulista amineirada conta uma história de que, “um dia, um rapaz chegou aqui com o sobrinho, e a criança estava branquinha, você via que fazia muito tempo que não tomava sol. E a criança saiu correndo, meio descoordenada, como se vivesse entre quatro paredes e nunca tivesse visto isso. E o garoto catou uma bola que tinha solta ali no campo, e jogou, e correu, e ficou vermelhinho, e numa felicidade pelo tio ter trazido aqui. O tio falou assim: ‘Você ajoelha e reza?’. Só com a pergunta dele eu entendi tudo.”
Nina entende que atende ao que o cliente gosta, sintetizando com uma frase atribuída ao poeta libanês, nascido em 1883, Khalil Gibran: “A simplicidade é o último grau da sabedoria”.
“Você vai vivenciando, vivenciando, vivenciando, até transformar aquilo numa coisa simples. Aí, quando você transforma uma coisa simples, aquilo é saber o que é uma arte, qual é o ritmo do artista que fez aquilo”. “Quando você dá muita informação, não fica tão bonito”, ela diz, evidenciando o encantador paradoxo de Furnas.
Tópicos: artesanato / Usina Hidrelétrica de Furnas



































