Juiz de Fora tem primeiro registro mineiro de espécie de cobra-de-duas-cabeças

Exemplar foi coletado em 1847 e preservado no Museu de História Natural da Dinamarca; estudo recente notou que identificação da espécie estava errada 


Por Nayara Zanetti

07/12/2024 às 06h00- Atualizada 07/12/2024 às 14h32

anfisbena de cabeca pequena Mauro Teixeira Junior
A anfisbena-de-cabeça-pequena (Leposternon microcephalus) é uma das espécies mais comuns em Juiz de Fora. A cabeça mais pontuda é mais adaptada a cavar solos mais profundos. (Foto: Mauro Teixeira Junior)

Um estudo, publicado neste mês na revista alemã Evolutionary Systematics, descreveu o primeiro registro de uma espécie de cobra-de-duas-cabeças, a anfisbena-do-sudeste (Amphisbaena hogei), em Minas Gerais, a partir de um exemplar coletado em Juiz de Fora. Apesar de a pesquisa ser recente, essa descoberta teve início no século XIX quando o naturalista Johannes Theodor Reinhardt chegou ao Brasil, em 1847, através de um navio da coroa dinamarquesa, chamado Galathea, percorreu o caminho da Estrada Real e recolheu exemplares de diversos animais ao passar por Juiz de Fora. Entre eles estava a anfisbena-do-sudeste, que ficou – e ainda é – preservada no Museu de História Natural da Dinamarca. 

Porém, até o momento, o animal era descrito como se pertencesse a outra espécie. Ao saber da história desse exemplar de Juiz de Fora, o professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Henrique Costa, especialista em anfisbenas, procurou o Museu da Dinamarca e concluiu que a identificação da espécie estava errada. Diferente de espécimes de aves, répteis e outros animais coletados por Reinhardt durante sua viagem ao Brasil para serem enviadas à Dinamarca, nada foi publicado pelo naturalista sobre a pequena anfisbena de apenas 12 centímetros, até onde se sabe. 

cobra-de-duas-cabeças
A anfisbena-gigante (Amphisbaena alba) também pode ser encontrada na cidade, mas com menor frequência, e é a maior anfisbena do mundo com aproximadamente 80 centímetros de comprimento. (Foto: Henrique Costa)

No entanto, Henrique explica que, após mais de cem anos da coleta de Reinhardt, o pesquisador estadunidense Carl Gans visitou em 1960 o acervo do museu e encontrou preservada a pequena anfisbena. Em seguida, o cientista a identificou como anfisbena-púrpura (Amphisbaena prunicolor), uma espécie que ocorre principalmente na Região sul do Brasil. Quase 65 anos depois desse primeiro estudo, o professor da UFJF descobriu que, na verdade, se tratava da anfisbena-do-sudeste, uma espécie que ocorre na Mata Atlântica, do norte de Santa Catarina ao litoral do Rio de Janeiro. Dessa forma, a pesquisa aponta que Juiz de Fora é agora o registro mais ao norte (setentrional) desta espécie e o único registro conhecido no território mineiro. 

anfisbena sudeste Foto Museu de Historia Natural da Dinamarca
A anfisbena-do-sudeste tem cerca de 12 centímetros de cumprimento. (Foto: Daniel Klingberg Johansson/Museu de História Natural da Dinamarca)

Brasil abriga 40% das espécies de cobra-de-duas-cabeças do mundo

A nova descoberta reforça a importância do Brasil ao abrigar uma grande diversidade de espécies de cobra-de-duas-cabeças. De acordo com o pesquisador, das cerca de 200 espécies conhecidas no mundo, 80 ocorrem em território brasileiro. “As anfisbenas são um grupo de lagartos que, ao longo de milhões de anos de evolução, se tornaram fossoriais, ou seja, vivem no subsolo. Elas perderam as patas, desenvolveram um corpo comprido, escamas formando aneis em volta do corpo e uma cabeça forte, usada para cavar o solo”, explica Henrique, que alerta para a diferença entre as anfisbenas e as serpentes apesar da semelhança. “Elas não são serpentes, mas “primas” delas na árvore genealógica dos répteis.” 

Por se alimentarem de vários animais do solo, como formigas, cupins e besouros, as anfisbenas possuem um significativo papel ecológico. Segundo o professor, seus túneis subterrâneos podem ajudar na aeração do solo, mas ainda faltam estudos sobre essa questão. Ele argumenta que uma das grandes lacunas de conhecimento científico sobre a biodiversidade é a falta de informações adequadas sobre a biogeografia de cada espécie, ou seja, sobre onde ela ocorre. 

“Isso é uma realidade para muitas espécies, principalmente no Brasil. Então, pesquisas que investigam e ampliam o conhecimento sobre onde uma espécie existe ou já existiu são fundamentais para preenchermos essas lacunas de informação, permitindo, a partir daí, avançarmos com outras perguntas e outras pesquisas”, diz o cientista. 

Em relação a anfisbena-do-sudeste, não há nenhum outro registro na região além do exemplar preservado há quase 180 anos. “Isso nos mostra a importância dos museus de história natural e das coleções científicas como “bibliotecas da biodiversidade”. Ainda não há informações atuais sobre a existência da espécie na cidade. Henrique diz que pode ser que ela não tenha se adaptado à urbanização de Juiz de Fora ao longo de quase dois séculos e tenha sido extinta na região. 

“Se isso tiver ocorrido, nós só sabemos que esta espécie um dia existiu em Juiz de Fora graças ao exemplar preservado em uma coleção científica. Mas também é possível que a espécie não tenha desaparecido de Juiz de Fora, porém seja muito rara e ainda ocorra em áreas mais preservadas do município. Só com mais pesquisas poderemos tentar responder esta questão.” 

Atualmente, duas espécies de cobra-de-duas-cabeças são encontradas em Juiz de Fora: a anfisbena-amarela ou anfisbena-gigante (Amphisbaena alba) e a anfisbena-de-cabeça-pequena (Leposternon microcephalus), que ficam bem maiores do que os 12 centímetros da anfisbena-do-sudeste. 

Exemplar de JF Foto Museu de Historia Natural da Dinamarca
Professor concluiu, por meio das fotos do acervo do museu, que identificação da espécie estava errada. (Foto: Daniel Klingberg Johansson/Museu de História Natural da Dinamarca)

Ciência cidadã

O professor ressalta a importância da ciência cidadã para que mais informações sejam adquiridas sobre a espécie. “Anfisbenas são difíceis de serem vistas porque vivem no subsolo, mas, às vezes, elas são encontradas na superfície, especialmente após dias de muita chuva.” Por isso, Henrique orienta que qualquer pessoa que avistar uma anfisbena pode tirar fotos dela com o celular e compartilhar pelo iNaturalist (iNaturalist.org), uma plataforma de ciência cidadã onde as fotos enviadas podem ajudar em pesquisas científicas. “Eu convido todos os leitores da Tribuna de Minas a acessarem o website ou baixarem o app do iNaturalist e compartilharem por lá fotos, ão só de animais, mas de qualquer ser vivo silvestre que observarem na cidade, na zona rural, em parques”, finaliza. 

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