Gatos: uma especulação (ou carta ao professor José Neftalí Recinos)

Por Wendell Guiducci

Caro professor José Neftalí.
Foi com muita alegria que recebi seu comentário acerca da última crônica publicada neste espaço, sobre o conciliábulo que mantive com um cão vira-latas no Parque Halfeld dia desses. O senhor me questionou, um pouco angustiado, sobre os gatos. “Por que devo prestar mais atenção aos gatos? Tenho quatro! Fico preocupado”, foram suas palavras no Facebook.
E lá mesmo prometi que voltaria ao Parque Halfeld em busca do cachorro, para indagá-lo sobre o tom ameaçador da observação que ele me fizera sobre os felinos. Todavia, meu muito estimado professor Neftalí, não encontrei o referido mastim.
Restou-me especular.
Os gatos, como o senhor bem sabe, pouco colaboram para a vida prática dos humanos. São meros ornamentos vivos aos quais, por certo, nos afeiçoamos. Diferente dos cães, ainda hoje utilizados para vigiar e caçar, e de outros animais como cabras, bois, galinhas e ovelhas, que cedem ao longo da história leite, carne, ovos e lã para nos alimentar e oferecer conforto, os pequenos felinos – são mais de 600 milhões entre nós, dizem! – não servem para absolutamente nada.
(Recuso-me a acreditar que aqueles espetinhos vendidos no entorno do Maracanã sejam de fato “churrasquinho de gato”. O senhor convive com gatos e sabe: têm muito pouca carne.)
Ainda assim, sabe-se lá com que intuito, os gatos selvagens foram domesticados, inicialmente no Oriente Médio, na região do Crescente Fértil, e depois espalharam-se por todo o mundo. Vêm do Egito as mais abundantes representações dos gatos em ambientes domésticos, sentados sobre cadeiras, usando coleiras, focinheiras etc. Na verdade, professor Neftalí, no Egito os gatos conquistaram o status de divindades cerca de 2.900 anos atrás, representados na figura da deusa Bastet. Toneladas – sim, toneladas! – de gatos mumificados foram encontrados pelos arqueólogos na cidade sagrada de Bastet, Bubastis.
Imagina o prestígio: mumificados como faraós, verdadeiras divindades terrenas, uma veneração que durou mais de meio milênio.
Todavia, essa notoriedade arrefeceu, declinando junto com o poder do próprio Egito. Era uma vez a adoração aos gatos, reduzidos à categoria de bichanos. Postos para fora de casa. Condenados a comer ratos. A revirar lixeiras. Quando muito, a se alimentar de restos de comida da família. De deuses do Antigo Egito a mendigos da Revolução Industrial.
Pobres bichos, professor Neftalí.
Nos fins do século XIX, o jornalista Ambrose Bierce assim definiu o gato: “Um delicado e indestrutível autômato destinado pela natureza a ser chutado quando as coisas dão errado no círculo doméstico”. Isso nos dá boa medida do fundo de poço a que chegou o desafortunado animal.
Penso que talvez aquele cachorro do Parque Halfeld se referisse a esta inaceitável derrocada social, sabe? De divindades a saco de pancadas em um espaço de dois mil anos? Ora… talvez, professor Neftalí, eles não tenham aceitado bem tal decadência. Talvez hoje, novamente aceitos e bem tratados nos seios familiares, estejam planejando uma escalada de volta à antiga condição.
De quando eram venerados.
Mas como, se não fazem questão de ser simpáticos, exceto quando recém-nascidos? Como, se mantêm-se dóceis mas paradoxalmente indomáveis, donos de suas próprias vontades e regimes?
Se a retomada não será pela sedução… será pela força?
Todo esse ressentimento acumulado ao longo de dois longos séculos de humilhação, professor Neftalí, o que pode se tornar?
O que estariam tramando esses felinos em seus movimentos lânguidos e silêncio insondável?
Deixo aqui estas minhas especulações e a promessa de, encontrando o vira-latas, inquirir-lhe mais profundamente sobre o assunto.
Remeta meu carinho à professora Gabriela.
Afectuoso saludo.
Wendell

gato del
O “Gato de Gayer-Anderson”, feito de bronze e encontrado no Egito, data de aproximadamente 664-332 a.C. Foi doado ao Museu Britânico pelo major Robert Grenville Gayer-Anderson.
Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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