Uma última crônica

Por Wendell Guiducci

Uma última crônica, se eu a soubesse assim, derradeira, cuidaria para escrevê-la não com a mão trêmula do suicida, mas com o aceno suave de quem vai sem nunca saber se volta. Evitaria nessa crônica substantivos categóricos, advérbios de negação e adjetivos pejorativos, bem como palavras que evocassem qualquer tipo de ressentimento ou mágoa. Correria, como sempre corri, das reticências e saltaria as armadilhas das interjeições, que, no hipotético caso de uma carta terminal, poderiam lhe conferir tom demasiado dramático.

Sabendo ser aquela uma crônica final, talvez eu levasse não horas, mas semanas para entregá-la. Pensaria nas palavras certas ao longo dos dias, no acordado das noites. Talvez eu as colhesse num cruzamento de ruas, na porta de uma padaria, no voo suspenso de um beija-flor. Em um livro escrito em outra língua, em uma tatuagem, em uma camisa muito velha e furada que se usa para dormir. E iria acumulando essas palavras na minha cabeça, sem tomar notas, deixando que elas se encontrassem, dessem as mãos e brincassem entre si.

Nessa minha última crônica, eu que não sou o Sabino buscaria a pureza daquela última crônica dele e, sem conseguir encontrar tal pureza em mim, ainda antes de escrevê-la, admitiria com um sorriso franco minha última derrota. Afinal, o que é ser cronista senão assumir um compromisso regular com o fracasso? Um dia sairá boa, no outro, não. Paciência. O mundo não cabe mesmo em um cantinho de página. Mais importantes são os beija-flores e as camisas furadas e as ruas que se cruzam e seguem seus caminhos sem nunca de fato se separarem.

Uma última crônica, eu tomaria cuidado de fazê-la livre de desconsolos. Entre a mão pesada do juiz e a mão leve do punguista, eu usaria a segunda. Tomaria então a pena com a brandura do amante que toca o corpo da mulher amada. Não para possuí-la, mas antes para sentir a textura da luz que banha sua pele na tarde dourada. E deitando a pena enfim no papel, começaria meu derradeiro trabalho, tentando fazer a tinta se lembrar dos tempos em que foi rio, dos tempos em que foi chuva.

Belo Horizonte, 28 de agosto de 2025

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka.Instagram: @delguiducci

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