Dentre os animais urbanos, os pombos costumam ser os que gozam de menos prestígio, rivalizando talvez com ratos e gambás. Há, claro, alguma margem para romantismo quando pensamos na revoada dos pássaros nas praças, perseguidos por cachorros ou crianças; ou ainda se lembrarmos do clássico do grande mestre do folk caipira, Zé Geraldo, nosso irmão ali da Serra da Onça, que desde 1981 brada em sua roufenha voz: “Tudo isso acontecendo e eu aqui na praça, dando milho aos pombos”. Entretanto, via de regra, epítetos pouco elogiosos perseguem os pombos urbanos, como “ratos de asas” e “rolinha de sarjeta” (que acabo de inventar).
A ciência diz que esses bichos alados podem causar doenças, uma infindável série de “oses”: toxoplasmose, histoplasmose, clamidiose, criptococose, salmonelose. É de conhecimento geral também que não se deve estacionar carro sob árvores ou fiação da rede elétrica em determinadas regiões da cidade onde há povoação de pombos – quem já teve seu Fiat carimbado ali na Batista de Oliveira, na altura do Iram, o sabe muito bem. Os geniais Mamonas Assassinas especularam até a existência de espécimes “com mira laser, para o tiro sair sempre fatal”.
Por todo o supracitado, os pombos urbanos, pombas, pombinhas, pombo-comum, Columbia livia, seja lá o nome que escolhamos, estão destinados a tudo, menos à grandeza. Seu lugar é a miséria, e sua identidade, a indigência. Arrulhando no esterco de apodrecidas cumeeiras ou revirando restos em calçadas sórdidas, vivem sob a mira de espingardas de chumbinho e rodas de automóveis. Mas mesmo entre eles, cujo lugar desenhado pela Grande Providência no Reino Animal é a borda das valas e bueiros, há os que se rebelem contra sua condição. Eu mesmo presenciei uma cintilância dessa resistência outro dia.
Eu descia a Rua Vicente Beghelli, no Bairro Dom Bosco, caminhando sentido Centro. Ali as calçadas desaparecem do nada sob o matagal que pende dos barrancos ou sob as rochas que se pronunciam por sobre o passeio, e súbito você se vê desviando de carros e motofretistas apressados pela pista de rolamento. Minhas botas trotavam sobre restos de construção, destroços de telhas e azulejos espatifados. Ao largo do meio-fio o vento soprava saquinhos de cachorro-quente com memórias de batata-palha e molho de tomate coagulado.
Metros adiante, pairando sobre a flor das indignidades urbanas, divisei um grupo de pombos. Reviravam o que parecia ser resquício de comida num trecho de calçada tomada pelo mato e por rachaduras imemoriais. Quando da minha aproximação, alguns apenas se recolheram mais à esquerda; outros alçaram voo em disparada sentido Monte Sinai; e um único, irresoluto entre o chão e o céu, parou no ar. Assim, como Michael Jordan. Ou Dadá Maravilha suspenso sobre a escumalha citadina. Ou melhor: um beija-flor. Prometido não ao chorume das coisas imundas, mas ao néctar de suculentas flores.
Foi por um ou dois segundos apenas. O tempo de um clarão na mais comum das manhãs. Mas foi como se aquele pombo com ganas de helicóptero gritasse ao mundo que discordava de seu destino. Que vivia ali entre os ultrajados e diminuídos, dividindo os restos que lhe cabiam na ordem das coisas como elas são, mas aspirava a outra vida. Que tinha em si uma outra vida. A vida que provavelmente ele nunca chegará a viver. Mas naquele momento, naquele brevíssimo momento, diante dos meus olhos, o pombo foi Michael Jordan e foi Dadá. Na ladeira da Vicente Beghelli, o pombo foi beija-flor.