Há determinadas tarefas cotidianas da qual poucos seres humanos escapam. Isso, claro, se você for um ser humano funcional e estiver socialmentente posicionado da linha da classe média para baixo. Estão excluídos, portanto, milionários e indivíduos com tendências escravocratas – em que o pese o fato de, muito frequentemente, encontrarmos ambos os perfis num único sujeito. Uma dessas tarefas banais a que me refiro é arrumar gaveta de meias. Todos nós, dentro do estrato social supracitado, mais cedo ou mais tarde, nos deparamos com a inglória missão.
O motivo que nos leva a desafiar nosso senso organizacional é de origem vária. Uma mudança de residência; uma viagem de férias prolongada; a constatação irrefutável de que sua gaveta se encontra no mais absoluto caos, sendo esta última a mais recorrente das razões. E depois de muito postergar, certo dia você enfim decide, peremptório: “vou dar um jeito nessa joça e é hoje!”.
Então você começa. Primeiro, separa aquelas meias com as quais tem maior afinidade, aquelas que tem usado com maior frequência ultimamente e que melhor quadram a seu atual estilo pessoal (que muda). Depois, passa àquelas que já não gosta tanto, ou porque enjoou ou porque nunca gostou mesmo, presente daquela tia de Manhuaçu, que você usava apenas para andar sem chinelo dentro de casa. E, por fim, chega àquelas que estão ameaçadas de despojo: as que já não têm par e as furadas.
E aí é sempre um dilema: jogar fora aquelas em bom estado, porém inadequada ao seu atual temperamento estilístico? Desfazer-se daquelas solitárias, em relação às quais você ainda nutre tímida esperança de encontrar o par perdido? Enquanto reflete sobre essas coisas, entre um e outro espirro, você se vê transportado ao passado. Meias do tipo sapatilha que você comprou numa quinta abafada de fevereiro às vésperas do carnaval; meias atléticas que você adquiriu para as corridas que nunca fez; meias que você calçou às pressas; meias que você descalçou lentamente, com o coração disparado.
Por fim, após divagar, recordar aventuras, lamentar a perda de peças prediletas e tomar difíceis decisões de desapego, você enfim tem sua gaveta organizada. Talvez até tire uma foto: “isso é arte!”, você se convence. E vendo toda aquela rigorosa disposição, as cores seguindo perfeita gradação das mais claras para as mais escuras, orgulhoso que beira a soberba, você se apercebe que aquilo, infelizmente, não durará muito tempo. Que o que virá em seguida adicionará uma dose de improviso ao cartesiano método. Que o que virá a seguir fará daquela ordem um mafuá.
E o que virá em seguida? O que virá em seguida, disciplinado leitor, é um trem que chamamos “vida”.