Lobinho

Por Wendell Guiducci

Tayane trabalhava em uma lanchonete e restaurante da MG-133, na altura de Coronel Pacheco. Pegava meio-dia e ia até oito da noite no balcão. Vendia coxinha e cigarrete, cafezinho e pingado, Krokero e Marilan. Tayane morava a cerca de um quilômetro da lanchonete e restaurante, numa casa às margens da rodovia, descendo por uma estradinha de terra, próximo a uma curva. Vivia com o pai, a mãe e uma tia. E com o Lobinho.

Lobinho era um vira-latas cujo apelido precedia seu porte: focinho pontudo, orelhas espetadas, pelo acinzentado. Só não tinha tamanho: ficava a meio caminho entre um pinsher e um beagle. Aparecera um dia na estradinha, mera bola de poeira e carrapicho, provavelmente abandonado à margem do caminho. Tayane o levou pra casa, alimentou, vermifugou, batizou e o viu crescer. Só não cresceu muito. “Desse jeito não vai servir pra tomar conta da casa não. Quem vai respeitar um cachorro desse tamanico?”, dizia o pai de Tayane, com um sorriso alegre e debochado, meio indígena, meio preto.

Pois bem. Lobinho não servia para tomar conta da casa, mas tomava conta de Tayane. Todo dia, quando a jovem saía para o trabalho depois de ajudar nos afazeres da casa e preparar o almoço, Lobinho saía junto. Guia, nunca usou: ia militarmente à frente de Tayane pelo acostamento, por aquele quilômetro empoeirado entre a casa e a lanchonete e restaurante. Um quilômetro que parecia muito mais longo nas noites de chuva ou naqueles dias em que o asfalto era um braseiro sob o sol de janeiro.

Lobinho nunca se atrevia a ir para a pista de rolamento: os caminhões passavam cuspindo monóxido de carbono, as motocicletas roncavam, Chevettes e S-10s passavam zunindo rente ao acostamento, mas Lobinho não dava mole, sempre ali, seguro à frente de Tayane. E pelo acostamento iam até chegar à lanchonete e restaurante, onde Lobinho passava o dia. Ficava ali fora, filando restinhos de quibe e asa de frango. Os caminhoneiros habitué já o chamavam pelo nome, e os fregueses de passagem simpatizavam com seu desembaraço. Não se metia embaixo de carro nem roubava comida alheia. À noite, Lobinho acompanhava Tayane de volta no mesmo percurso, o pelo do dorso iluminado pela lanterninha do celular.

Isso durou quatro ou cinco anos. Até que, no ano passado, um caminhoneiro abusou das horas desperto e, dormindo de olho aberto, invadiu o acostamento da MG-133 às onze e trinta e oito da manhã. Esmigalhou ossos e espatifou vísceras. O pessoal nunca mais esqueceu, mas Lobinho não teve tempo de entender o que houve. Com o corpo de Tayane embaixo de 30 toneladas de pinus, ele nunca mais a viu. E é por isso que, todo dia e toda noite, faz o mesmo percurso entre a casa e a lanchonete e restaurante, na esperança de encontrar a dona que perdeu.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka.Instagram: @delguiducci

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