Quando montávamos nossos exércitos de soldados de plástico no barranco dos fundos de casa, não era para matar crianças desnutridas. Nos nossos corações infantis, víamos apenas inimigos verdes ou amarelos ou azuis ou vermelhos. Todos também de plástico. Nunca poderíamos imaginar disparar nossas bazucas contra caminhões de suprimentos. Jamais atirar nossos morteiros contra helicópteros carregados de medicamentos. Nem em mil anos passaria por nossas pequenas cabeças inocentes explodir coisas para matar pessoas de fome.
Entre a bananeira do quintal e a grande árvore onde minha imaginação pendurava vampiros, lobisomens e marcianos, posicionávamos nossos soldados de plástico para guerrear com outros soldados de plástico. Às vezes com cavaleiros medievais, que algum colega trazia e abrigávamos no nosso diverso jogo marcial. Nenhum deles, soldadinho com metralhadora ou rifle, ajoelhado ou em pé, mirava a cabeça de gente carregando saco de arroz ou biscoitos de alto valor nutricional, que alimentariam meninos esquálidos cujas costelas espetassem a frágil pele de criança. “Fome”, então, não era arma de guerra.
Nossos pesadelos eram povoados por assombrações de cinema e fantasmas que habitam histórias de vó. Nossos olhos, que então pouco viram do mundo, não haviam ainda alimentado nossos cérebros da escuridão do coração humano. Ignoravam as imagens de homens mutilados, de mães carregando os cadáveres vivos de seus filhos, de olhinhos mortos vitrificados dentro de horrendas caveiras infantis. A guerra era para nós um bangue-bangue em que um caía baleado e se levantava para morrer outra vez. E outra vez. E outra vez. Sem sangue nem lágrimas.
Nas nossas pelejas travadas entre folhas secas e formigueiros, pedregulhos e trincheiras inundadas por água de torneira, os soldados de plástico não matavam nem morriam de verdade. Depois da brincadeira, recolhíamos os exércitos em embornais ou caixas de sapato, meio limpos para a próximo batalha. E íamos então para nossas casas, comer pão com manteiga e beber café com leite, e tomar banho e jantar mingau de couve, mais ou menos cientes de que “fome” era só uma cosquinha na barriga avisando que era hora de se alimentar.