Os carros rolam devagar pelo pavimento fustigado da MG-133. A rodovia esburacada é um cartão de visitas pouco digno para os visitantes que pousam no Aeroporto Presidente Itamar Franco, em Goianá, e se dirigem a Juiz de Fora. Eu faço o sentido contrário, Juiz de Fora – Ubá, numa límpida manhã de julho. O tráfego é lento porque há quebra-molas e radares e carretas empanturradas de madeira e painéis de fibra de média densidade, cardápio que os brutos arrotam em forma de monóxido de carbono e hidrocarbonetos a cada pisada no acelerador.
Às margens da estrada passam vagarosamente estáticas escolas, vendas, postos de gasolina, áreas de lazer entristecidas e carcaças de automóveis, a natureza morta das rodovias. No estéreo, Marcus King canta com sua voz de engrenagem mecânica mal lubrificada: “Hoje aqui, amanhã não mais”. Nada surpreende. Tudo igual ao de sempre, tantas e tantas vezes nesse trajeto. Exceto o cara da borracharia. À minha esquerda, do lado de lá dos carros que vêm mais rápido que eu na contramão de direção, o cara da borracharia rega uma planta.
É uma única e miserável planta, posta no chão de saibro e desalento, a dois ou três metros da portinhola do banheiro da borracharia. É um banheiro tão pequeno que, com a porta entreaberta, mesmo de onde estou, pode-se ver o vaso sanitário, a caixinha d’água acima e a nefasta cordinha pendurada, a gordura de dez mil mãos a lhe encerar os fios outrora brancos. Mas esse é apenas o fundo do quadro. Bem como a parede da borracharia, caiada de branco do meio para cima, pintada de verde do meio para baixo. No centro do quadro está o cara da borracharia, sua mangueira e a inopinada planta.
Não me atrevo a adivinhar essa planta. Sei que tem folhas palmadas na base, folhas espetadas de um verde muito escuro. Do meio delas emergem caules marrons quase negros, caules tão peludos que desafiam os biombos científicos que separam os reinos Animal e Vegetal. Flor, não há. O cara da borracharia não se importa com isso. Despeja a água de uma mangueira no bojo daquela planta como uma estátua erigida em uma fonte. É homem de carne e osso feito cimento na paisagem melancólica do acostamento, água a verter da borracha desbotada.
Na MG-133, cada qual cuida do papel que lhe cabe. Aos caminhoneiros, a boleia. Às crianças, o sono. Aos cachorros e às primas, a fuga da morte. A mim, a anotação. No cenário em que somos todos os mesmos, o cara da borracharia é outro. Não cuida de macaco hidráulico nem de banheira de água negra. Não procura furo em pneu nem aplica macarrão em buraco de prego. Não lida com chave de roda, espátula, alicate, calibrador. Na MG-133, o cara da borracharia é um subversivo que enfrenta a paisagem prevista. Os carros e seus motoristas, tão óbvios e sem imaginação, que esperemos.