Uma barba bem-feita

Por Wendell Guiducci

Barbeiras mulheres não são novidade já há algum tempo. Eu mesmo, quando vou dar um tapa no topete moribundo, aproveito para me submeter à navalha da Bruna. Barba, cabelo e bigode, como dizem.
Mas outro dia estava eu em outra cidade para um compromisso profissional. Ao passar em frente a uma dessas barbearias com uma caveira de cavanhaque pintada na fachada, decidi entrar. A barba nem estava lá muito desgrenhada, mas ainda faltavam quatro horas para a reunião e era preciso ocupar o tempo.
Há, imberbe leitor, uma dimensão terapêutica no negócio da barbearia. Você se senta ali na cadeira e deixa a pessoa trabalhar seu rosto. A toalha quente é muito relaxante. Há relatos de homens que fecham os olhos e dormem, vejam só. Depois vem o trabalho da navalha, que em nada lembra aquele prestobarba azulzinho. É mais como ser acarinhado pelo aço.
Pois bem. Nesta cidade que não era a minha, quem me atendeu foi uma moça de longos cabelos encaracolados e reduzidas palavras. Acomodei-me na cadeira e ela disparou, prática:
– Como vai ser?
– Só tirar um pouco de volume, por favor.
E então ela começou seu trabalho, primeiro com a máquina de aparar, que em suas mãos se converteu subitamente num cortador de grama. Corria de um lado a outro como num desenho de Tom & Jerry. No caso, eu era Tom, o gato que sempre apanha.
Uma onda de arrependimento ameaçou se apossar dos meus pensamentos, mas eu tentei dissipá-la quando a moça deixou o salão entrando por uma portinha. Me ajeitei na cadeira, olhei para o espelho e não havia nada de anormal. Nenhuma fatia fora arrancada da minha pele e a barba estava bem aparada. Ela sabia o que estava fazendo. Só era um pouco abrutalhada, pensava comigo quando ela voltou trazendo a toalha quente.
– Vou deitar a cadeira – afirmou, dando um tranco na velha poltrona de couro antes mesmo de terminar a frase. Lá estava eu, estirado, à sua mercê. Ela então besuntou minha face com um creme e a cobriu com a toalha, deixando somente as ventas para fora. A sensação inicial era de que ela havia derramado angu quente na minha cara. Cravei as unhas no braço da cadeira sem dar um pio. Na minha imaginação, a toalha fumegava e embaçava todos os espelhos da barbearia enquanto ela, entre a bruma perfumada, ria um riso demoníaco.
– Está quente?
Respondi que não, que tudo bem, que eu gostava de banho quente e estava acostumado. Era o que permitia o orgulho de um machista estrutural em desconstrução. Por dentro, pensava que levantaria daquela cadeira sem meu rosto, derretido sob o calor da toalha infernal. Se caiu uma lágrima, ninguém poderá provar. Estava certo de que ela se deliciava com meu calvário.
Aos poucos me acostumei à fornalha, focando meu pensamento na ansiedade pela máquina massageadora, o momento mais relaxante do barbear. E qual foi minha surpresa quando, em vez de um aparelhinho como o da Bruna, versão mínima de um compactador de terra, a moça de selvagem cabeleira começou a desferir soquinhos na minha testa. E murrinhos nos olhos. E golpinhos de caratê nas bochechas. Eis-me ali, longe de casa, levando socos e murros e golpes de caratê de uma barbeira sádica. Misândrica. Tirana.
Depois da sessão de espancamento, ela enfim tirou a toalha. Para minha surpresa, não havia sangue. Uma torturadora experimentada, aquela. Enquanto ela levava para longe o pano branco, ergui a cabeça e vi que meu rosto estava lá, cada coisa em seu lugar, sem hematomas. Ela não deixava marcas de suas microagressões.
Ao ouvir seus passos voltando, deitei rapidamente minha cabeça na poltrona, que àquela altura fazia qualquer cadeira de dentista parecer colo de mãe. Em meu coração, a educação católica retumbava irracional: será castigo por trair Bruna? Pois vinha agora o teste de fogo: a navalha.
A moça de cabeleira leonina preparava a lâmina e diante de meus olhos passaram todos os gângsteres degolados em filmes de máfia. Sangue esguichando no espelho, nos ternos italianos, tesouras cravadas no peito e coágulos monstruosos misturados a tufos de cabelo pelo chão. O que seria de mim nas mãos desta hábil carnífice, agora munida de uma arma branca? Vingava-se de mim? Ou apenas lhe aprazia o sofrer alheio?
Ela se aproximou e, sem dizer palavra, deu início à mais lenta feitura de barba jamais experimentada no Ocidente.
– Você está suando. Quer que ligue o ar? – questionou a malvada, e eu sabia que sob sua máscara desenhava-se um sorriso diabólico. Com medo de dizer qualquer coisa e no movimento da mandíbula ter minha traqueia exposta – uma armadilha para simular acidente, de certo! -, apenas levantei o dedo em negação. “Não, obrigado.”
Um milhão de segundos depois, minha jugular exposta ao risco, eu estava de pé, com a barba muito bem-feita. O corpo doía todo, dada a alta tensão do procedimento, mas nem uma gota de sangue foi derramada. Deveria apenas buscar minha mala no carro para trocar a camisa, absolutamente empapada de suor. Paguei pela barba e me dirigi à saída, de onde pude ouvir a moça:
– Se precisar, sabe nosso endereço.
Eu apenas acenei com a cabeça e ganhei a rua. O sol de novembro fazia brilhar as sacadas dos casarios dessa simpática cidade, cujas janelas são cúmplices de pequenas crueldades e onde nunca mais voltarei a me barbear.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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