As cores do Mirante

Por Wendell Guiducci

O Mirante da BR é um ótimo lugar para levar cães a passear, tanto melhor quanto mais cedo for. Antes das nove haverá menos gente e assim será mais pacífico. No avançar da hora, mais pessoas se aglomeram e a possibilidade de contemplação plácida das bordas da Mantiqueira contra o céu primaveril vai, minuto a minuto, para as cucuias.
Cedo demais – digamos, antes das sete, sete e meia – também não será apropriado, dada a possibilidade de cruzar algum vampiro esquecido de meter-se em seu caixão a tempo de escapar da aurora. São danados para oferecer corote aos cachorros ou rolar com eles na relva úmida, imitando-lhes o linguajar próprio dos cães.
De modos que, com um pouco de sorte, você poderá ter quase exclusividade sobre a vastidão do pasto que se espraia às margens da rodovia. Foi o que ocorreu comigo no último domingo, quando cheguei ali pelas oito e pouca na companhia de meu vira-latas, Gerson Charles I e Último. Enquanto evoluíamos sob os eucaliptos, partiam os últimos vampiros: um em uma CG 125, outro em um Kadett azul.
Normalmente esbaforido em sua adolescência, Charlie não demonstrou pressa. Investigava, aqui e ali, os odores impregnados na grama, nas pedras, nos troncos de árvores. No asfalto, zuniam ônibus e caminhões e motoqueiros solitários em suas armaduras de couro e plástico. Na borda da mata próxima, um lagarto teiú embrenhava-se sob as folhas de alocasia: é finito o sossego dos répteis.
Próximo à cervejaria que se precipita sobre o vale, uma moça em roupas multicoloridas de ciclista fazia pose para si mesma. A bicicleta encostada contra a cerca, ela sentada de costas para a BR, no chão, de frente para as montanhas, com as pernas cruzadas à maneira dos monges, deixava que o celular, apoiado em uma pedra, fizesse seu serviço com a câmera fotográfica no modo automático.
Depois do clique, ela se levantava, checava a qualidade da foto, ajeitava novamente o celular, sentava-se como uma budista e repetia o ritual solitário. De longe, senti-me impelido a oferecer meus préstimos de fotógrafo de smartphone, mas desisti logo da ideia por medo de espantá-la em sua metódica cerimônia. Há tempos mulheres não se sentem seguras com a presença de homens em lugares ermos. E não se pode julgá-las.
Vindo da rodovia, um grupo de três ciclistas em roupas ainda mais chamativas que a da moça pousou ao lado dela. Pensei serem colegas desgarrados no rolê do pedal, mas a moça logo abandonou sua contemplação de Instagram e pôs-se a rodar sentido Salvaterra, deixando os três homens a fotografarem-se uns aos outros.
Depois deles, estacionaram um casal com uma criança de pouco mais de um ano; duas senhoras de pulmões privilegiados em malhas de ginástica; um motociclista aparentemente à espera de outros como ele; e o verde do Mirante foi, lentamente, sendo tingido de cores e vozes variadas.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da UFJF, mestre e doutor em Estudos Literários pela mesma instituição. Na Tribuna, atuou como repórter de cultura e foi editor de internet, de esporte e do Caderno Dois. Natural de Ubá, hoje desempenha o papel de editor de integração da Tribuna e assina, todas as terças-feiras, a coluna de crônicas "Cronimétricas". Lecionou jornalismo, como professor substituto, na Faculdade de Comunicação da UFJF entre 2017 e 2019, e entre 2021 e 2022. É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério". Também é cantor da banda de rock Martiataka e organiza sua agenda rigorosamente de acordo com os horários de jogos do Flamengo. Instagram: @delguiducci

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