E essa hora perdida?

Por Wendell Guiducci

Soterrada sob a avalanche de odeios e adoros que fatalmente retumba nos primeiros dias de horário de verão, jaz aquela sensaçãozinha batráquia de que perdemos alguma coisa.

Como assim pular uma hora na vida da pessoa? Quem vai devolver esses preciosos 60 minutos? Não é à toa que repousa inquieto esse sentimento de privação.

Porque uma hora pode parecer pouca coisa para o Governo federal, que não tem corpo nem alma, coração nem espírito.

Mas não é.

Uma hora é muito para quem quer um cochilo no meio da tarde.

E talvez o suficiente para uma escapulida inconsequente no meio da manhã.

Para preparar um bom almoço.

Para ler um punhado de crônicas do Machado.

Para ir a pé e não de carro. Dar um rolê de moto.

Para se pensar melhor sobre uma decisão importante.

Para escolher as palavras precisas e não somente as necessárias.

Para ouvir um disco novo na íntegra.

Compor uma música nova. Pintar um quadro. Rabiscar um poema.

Curar uma dor de cabeça.

Uma hora de cafuné é tempo muito bem aproveitado.

Contemplar o movimento a partir de um banco de praça é desdobrar uma hora em várias. É quase viver outras vidas.

Uma hora é tempo bom para jogar uma pelada, uma partida de peteca, videogame, baralho ou gamão.

Brincar com as crianças. Brincar como as crianças.

Uma hora é tempo bom para uma visita.

Para um café no centro.

Três chopes e a conta.

Em uma hora podemos acertar contas com o passado, pavimentar o futuro, falar longamente ao telefone – com quem não se vê há muito ou com a atendente da Vivo.

Pois vive-se muito em uma hora.

Mas morre-se também.

 

watch1

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

A Tribuna de Minas não se responsabiliza por este conteúdo e pelas informações sobre os produtos/serviços promovidos nesta publicação.

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade pelo seu conteúdo é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.



Leia também