Deixa que eu levo

Por Wendell Guiducci

Que as tecnologias da informação e da comunicação, desde que foi inventado o telégrafo, lá no século XIX, agilizaram a vida, ninguém duvida. Pairam dúvidas é sobre quem de fato se beneficia da correria. Arrisco-me a dizer que, invariavelmente, será alguém que ganha bem mais dinheiro que o corredor. Quando você executa em dois minutos uma tarefa que levaria, digamos, duas horas para ser feita, sobram uma hora e cinquenta e oito minutos para que você faça outra tarefa e mais outra tarefa e mais outra e mais outra e deixe seu patrão mais rico. E assim nos tornamos uma sociedade de máquinas de fazer dinheiro, geralmente pra quem já tem muito.

Permita-me ilustrar, operário leitor. Quando precisa mandar um documento para determinada pessoa ou instituição, você simplesmente acessa em seu smartphone o referido “papel”, ora digitalizado em código de uns e zeros e armazenado em nuvem, e o envia pelo zap. Missão cumprida. Outra opção seria dizer “deixa que eu levo”. Para levá-lo, o primeiro passo seria buscá-lo na gaveta do guarda-roupas. Ou da estante da sala? E se não estivesse lá nem acolá, você perguntaria para sua mãe, para sua esposa, para seu marido, “Ei, fulano, você viu o documento tal?”, e vocês começariam um colóquio que poderia desandar para uma discussão, ou então evocar memórias afetivas que fariam ambos sentarem a remexer papéis antigos, levemente embriagados de gostosas memórias trancadas na mesma gaveta que o tal documento.

De posse do tal papel, você partiria para a rua. Talvez você fosse de bicicleta. Talvez de ônibus. Ou de carro. Quem sabe a tarefa lhe rendesse até um inesperado rolezinho de moto. Ou ainda, se fosse à tarde e a tarde estivesse agradável, soprando um vento morno sob nuvens branquíssimas, você decidisse caminhar. Com o documento bem guardado em um envelope pardo, você dobraria a esquina da sua casa e olharia para as fachadas das casas, para as esquadrias das janelas que guardam crianças e gatos e vovozinhas que assam bolos, e guardam dálias e antúrios e donas de casa que sonham com galãs de novela enquanto espanam o pó das cortinas. Talvez você cruzasse o olhar de uma dessas senhoras quando ela viesse abrir a janela para deixar a sala respirar.

E você seguiria flanando, digo, desempenhando sua missão de levar o documento, passando pelos letreiros estridentes das lojas, ao largo do rio de veículos que transitam em dois sentidos, levando pessoas preocupadas em seus buchos de metal e borracha. Talvez você decidisse tomar um cafezinho naquele botequim onde, quando o tempo permite, algo cada vez mais raro, você se reúne com amigos para umas cervejas no sábado à tarde. E você entraria no boteco e veria que as cores, os cheiros, as pessoas, tudo é diferente na tarde de hoje, diferente da agitação etílica dos sábados redentores. E você iniciaria uma breve conversa com o atendente sobre o tempo e a eleição de ontem e o jogo de amanhã. E você pagaria sua conta e seguiria seu destino.

Talvez você ouvisse, já na parte final do trajeto, vinda de uma loja de eletrodomésticos, uma canção de que gosta muito. E pelo restante do percurso você seguiria assobiando aquela melodia e ela se tornaria a trilha sonora da sua tarde. Com o papel bem seguro em sua mão esquerda, você entraria no local onde deveria entregar o tal documento, cumprimentaria com um sorriso a moça da recepção, passaria a ela o envelope pardo, um pouquinho amassado do passeio, um pouquinho amassado de vida, e se retiraria para fazer o caminho de volta para casa, vulnerável à cidade, exposto ao acaso da existência. Assim seria uma parte da sua tarde naquele dia.

Mas você mandou um zap.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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