Ruan e o futebol

Por Wendell Guiducci

Ruan nunca ligou para ver futebol, na verdade. Gostava de jogar, isso sim.
– Me chama que eu vou!
Mas, fora isso, não era muito ligado no esporte bretão. Quando perguntavam pra que time torcia, respondia:
– Atlético! Galo Doido!
Mas se apertassem mais um pouquinho e fizessem um comentário do tipo “aquela jogada do Luan contra o Corinthinas foi assim e assim e assado”, Ruan já saía pela tangente.
– Vou ali pegar uma cerveja.
E não voltava mais. Reinaldo? O único que ele conhece é o pai deste cronista.
E foi assim a vida toda, sem compromissos adiados em função de futebol, a vida inteira devotada à mulher e à filha, aos amigos e ao trabalho.
Mas veio morar no apartamento ao lado um novo casal. Gente de bom papo, que dividia com Ruan e a esposa, Marcele, o mesmo gosto por longas partidas de buraco, regadas a cerveja e tira-gosto. Ou vinho e tira-gosto, a depender do clima. Uma relação muito saudável e que a todos alegrava.
Ocorre que Valtencir, o novo vizinho, era fã de futebol. Como o carteado rolava às sextas-feiras, nada que fosse impeditivo. Porém, se havia um churrasquinho no sábado à tarde, Valtencir pedia polidamente para que a TV fosse ligada, com volume no zero, de modos que ele pudesse assistir ao jogo do Flamengo. Sentava lá, não incomodava ninguém, vibrava solitário com os gols, enquanto Ruan pilotava a churrasqueira e fazia piadas com os demais convivas. Se calhava de o Flamengo perder – coisa rara -, Ruan encarnava no vizinho.
– Perdeu o Mengudo, foi? Rárárá!
Ruan, que nunca desfrutara do prazer da zoeira futebolística, começava a sentir o gostinho pela galhofa. E aquilo, de alguma forma, foi se alastrando pela personalidade dele. Começou a assistir aos jogos do Atlético, agora não mais para zoar o vizinho, mas o professor da academia, que era Cruzeiro. O balconista do pet shop, que era Vasco. Algum tipo de prazer nunca antes experimentado foi aos poucos dominando Ruan. O futebol se tornou para ele uma espécie de droga neuroestimulante; o martírio, “insubstituível como um vício funesto”, conforme Nelson Rodrigues.
Certa quarta-feira, Marcele telefonou pedindo que Ruan fosse buscar a filha na escola, porque ela não poderia naquele dia.
– Manda vir de Uber!
– Hein? Por que você não vai buscar?
– Tem jogo do Galo!
No dia seguinte Marcele o botou pra fora de casa.
– Vai ver futebol no diabo que te carregue!
A partir dali o que se tem notícia é de uma entrega apaixonada e algo psicótica da parte de Ruan às teias insidiosas da arte de Pelé. O tempo com a família ocupado pela agenda do Campeonato Brasileiro. As sextas-feiras de buraco trocadas por solitárias jornadas acompanhando a Série B na quitinete alugada na Rua Braz Bernardino. Até a Segunda Divisão do Campeonato Mineiro entrou na lista de compromissos inadiáveis, o trabalho jogado para escanteio às três da tarde de uma quinta-feira ordinária.
– Tupi contra Aymorés no YouTube, bora lá!
Já meio amalucado, Ruan deu pra casar dinheiro em sites de aposta. Agora mesmo vai botar dez contos no IFK Mariehamn contra o HJK Helsinki pela Veikkausliiga, o Campeonato de Futebol da Finlândia, onde dizem que faz dias muito bonitos nessa época do ano.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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