Gastrô+ 09-03-2017
De comer rezando_____________
Comer sem amarras
Fundando o conceito de “gastronomia Voltaire”, Néctar Bistrô propõe cozinha desprovida de rótulos e predeterminações
Lá no início do século XX, uma galera do balacobaco bagunçou o que se conhecia, até então, sobre a arte em suas diversas manifestações. Foram os dadaístas, que lançaram um movimento artístico de vanguarda de Zurique (Suíça) para o mundo, mandando, entre outros recados, uma crítica ao que é estabelecido, rotulado, status quo, o tradicionalismo. Como todo grupo precisa de um QG, Tristan Tzara, Hugo Ball e Hans Arp, líderes do movimento, se juntavam a outros no Cabaret Voltaire, em papos de boteco que certamente redefiniram o curso da História da Arte em todo o planeta (que o digam modernistas brazucas como Manuel Bandeira e Mário de Andrade).
É com este revigorante espírito de vanguarda que o Néctar Bistrô lançou o conceito de “gastronomia Voltaire”, ao reformular seu cardápio, com inspiração no ponto de encontro da galera “dada”. “Não queríamos rotular o restaurante. Por que tem que haver uma cozinha? Contemporânea, mineira, italiana, portuguesa. A ideia era fugir do rótulo e abrir mão de um menu fixo, chefes fixos, de qualquer coisa que nos limitasse e mantivesse os clientes na zona de conforto, sem experimentar coisas novas”, diz o proprietário da casa, Alexandre Miranda em um papo agradável enquanto degustávamos amostras da proposta, naquela noite sob o comando do chef Marcão de Paula (o chef Rodolfo Mayer, do badalado Angatu, de Tiradentes, também assina criações especiais da empreitada Voltaire).
Sabores, texturas e harmonizações
Antes do abre-alas do cardápio, o sommelier Humberto de Morais sugere um Espumante Casa Valduga Brut Rosé, que embala o papo sobre o cardápio. Para começar, Marcão apresenta um cremoso shitake au gratin, com sabor suave, porém marcante; notas de alho-poró e crostinha gratinada de parmesão. A harmonização é com um Casa Rivas Chardonnay de colheita noturna, prática que deixa o vinho mais “macio” e saboroso do que o Chardonnay convencional. O paladar é refrescante e equilibrado, o que cai bem com a leveza do couvert.
Na sequência, sob as bênçãos de Humberto, migramos para mais um Casa Rivas, tinto chileno do Vale do Maipo, feito com a uva Syrah: escuro, potente, denso e ideal para quem aprecia vinhos intensos. Ele é harmonia de uma truta grelhada com ghee (óleo purificado da manteiga), servida com tomatinhos sweet grape confit, purê de baroa e alho assado. Uma combinação de paladares e texturas. Depois, Marcão reverencia um dos clássicos do Néctar, com tornedor de mignon servido com risoto de aspargos.
A carta de vinhos diversificada se apresenta de duas formas na sobremesa. A primeira presença é no sorvete de vinho, doce, mas não muito, com creme inglês de amêndoas quente e azeite trufado de chocolate. O vinho volta a aparecer na harmonização, com um Tarapacá de colheita tardia, especial para sobremesas. Leve e com personalidade, o sabor lembra mel e damasco, bem equilibrado e com retrogosto prolongado. Se no Cabaret Voltaire, os dadaístas pregavam a desconstrução da arte como conhecíamos, o Néctar acabou de ganhar uma militante em prol da desconstrução de seu cardápio. Viva Dada!