Batalha épica diária
Se tem algo que tira completamente o bom humor é ter que embarcar em um ônibus na Getúlio Vargas, entre as 17h30 e as 19h30. Invariavelmente, nesse horário, formam-se grandes aglomerados de pessoas próximo das placas de parada dos coletivos, onde os veículos estacionam para deixar passageiros e levar mais. A grande massa humana vai se movendo apressada para tentar entrar e garantir um assento, uma batalha épica é travada a cada porta que se abre. A coisa aperta, porque todos têm muito em comum. Estão no fim do dia útil, a caminho de suas casas, querem garantir o mínimo de conforto, desejam estar em qualquer outro lugar do mundo, fazendo qualquer outra coisa, com uma bagagem de cansaço que faz as pernas pesarem, com a sensação de que a linha que leva ao seu bairro é a mais demorada, com o corpo querendo se desmontar e muitos ainda miram as suas outras jornadas que ainda terão que encarar ao chegar em casa. Todos ambicionam algo e se ligam em muitas outras realidades além ponto de ônibus. Mas permanecem atentos para não ficarem para trás.
Quando o coletivo chega é como estouro de boiada. Uma explosão de força que sobra para todos os lados, empurrando em várias direções. A multidão se junta, se empurra, se acotovela, impede a passagem do público preferencial, faz cara feia, xinga, discute, joga ironia e segue em frente, porque o movimento não cessa. São cenas tristes de ver e doídas de sentir, quando se está no meio da boleira, porque a grande maioria das pessoas que ali está não merece passar por mais essa humilhação.
No meio da formação, não tem muito jeito, você é levado, mesmo que a contragosto, é dragado pela profusão de troncos, braços, que contrastam com os passos lentos, em direção a estreita porta de entrada. O espaço nunca parece ser suficiente para todo mundo que precisa entrar. Não se mede o cansaço. É o momento em que os pensamentos desconexos são varridos da mente e a tensão toma cada músculo do corpo. Concomitante a isso, sente-se uma vontade muito grande de entrar logo no coletivo, se fortalece uma preocupação com pertences, bolsas, mochilas, pastas e sacolas que são engolidos pelos corpos justapostos, sente-se o desconforto de estar amassado pelo bloco humano, fora os golpes – intencionais ou não – que se leva nesse ínterim.
Quem consegue garantir um lugar para viajar sentado deixa o corpo relaxar um pouco, ou não, porque mesmo sentado, quando o ônibus está lotado, o desconforto persiste, o calor emanado pelos corpos ajuda a aumentar o desgaste. As conversas, o barulho do entorno, a morosidade com que o veículo se move em meio ao mar de outros meios de transporte não ajuda a atenuar a sinfonia do caos. A cabeça, continua longe. Sempre fica impregnada a impressão de que tem como ser diferente, mas o que muda é só o número de passageiros, sempre em crescimento, assim como o preço da passagem. Já os coletivos, parecem ser sempre os mesmos.
O tempo passa bem devagar. Tem quem tente encurtá-lo ouvindo música em fones, entregando-se a uma conversa com o ocupante do banco ao lado, lendo um livro, fazendo as unhas, adiantando o estudo, jogando, assistindo a novela, falando ao telefone, tentando colocar o sono atrasado em dia com um cochilo, rolando as timelines de suas redes sociais, mas as curvas vão interromper todas as ações para lembrar que ainda falta chão. O respiro só chega quando as mãos puxam o sinal da descida, já nos bairros. A tarefa agora é desviar dos outros passageiros para conseguir descer, antes que as portas se fechem novamente e a viagem siga.
Nem tudo é tão ruim. No meio de toda a dificuldade, há uma lição para se tirar. Quem vem de mais longe, os que pegam os ônibus de linhas que vão para os distritos ao Norte da cidade, formam filas. Em média, esses passageiros esperam por muito mais tempo que os demais. Suas opções são infinitamente mais restritas, mas não falta entre eles civilidade e educação. Quem chega, respeita a formação, não passa na frente e não é preciso ninguém para fiscalizar quem foge a esse padrão. Parece até coisa de outro mundo, mas não é. Fazem parte dos mesmos grupos, sejam trabalhadores, estudantes, aposentados, pacientes, cidadãos, gente. Gente que vai continuar travando grandes epopeias para sobreviver, desejando um caminho mais tranquilo e mais agradável, até que os esforços se voltem para a necessidade de tornar a qualidade do transporte público um tema central e urgente. Enquanto o sonho de qualquer passageiro for voltar para casa em um veículo individual, que ofereça o mínimo de conforto, e desse modo engrossando uma frota já muito saturada de veículos, tornando o tráfego ainda mais pesado, podemos ter certeza que perdemos a guerra como sociedade.