Chegadas e partida
A primeira galeria da cidade a ter escada rolante desperta em mim profundas lembranças da infância. Conhecida como galeria do Zé Kodak, uma das lojas mais tradicionais de Juiz de Fora, ela abriga também a antiga Foto Sansão, onde muitos de nós fomos fotografados pela primeira vez em 3×4. Mas é a Lily Doll, especializada em artigos de pelúcia desde 1982, a que mais me toca. Eu explico: quando tinha 9 anos e morava na Rua Halfeld, usava a mesada que ganhava para comprar lá aqueles bonecos vermelhos em formato de bola que traziam junto ao corpo uma mensagem de amor. Havia muitos modelos daqueles seres lindamente desengonçados. Geralmente, tinham cabelos brancos e despenteados, os olhos esbugalhados e os braços pequenos. E havia mais um detalhe: eles eram perfumados, uma invenção da dona do estabelecimento que borrifava as peças com Gelatti, um perfume da década de 1970 bem adocicado que hoje não passaria no teste dos pediatras.
Como meu pai trabalhava com representação comercial, à época, e viajava muito, eu sempre ia na Lily Doll comprar um modelo antes de cada partida dele. Na véspera da viagem, quando a mala ficava aberta em cima da cama, eu ia ao quarto dos meus pais e escondia o boneco entre as roupas. Assim, quando o meu velho chegasse na Feira de Calçados do Rio Grande do Sul, para onde embarcava todo ano, encontraria o presente no meio de sua bagagem e se sentiria em casa com a gente.
O que meu pai nunca me contou é como explicava aos colegas de trabalho o cheiro de suas roupas, já que o excesso de Gelatti no boneco certamente impregnava todas as peças que ele levava na mala. Assim, o “seu” José foi colecionando os pequenos seres em sua mesa de cabeceira no quarto do apartamento da Rua Halfeld, onde os bonecos resistiram ao tempo. Já o imóvel, acabou sendo vendido.
É desse tempo a amizade que meu pai mantém com a família Turolla. De cliente dos tênis que meu pai vendia, seu Odonne, o dono da antiga Casa Orion, na Rua Marechal Deodoro, virou seu grande amigo. Quase todas as tardes, os dois tomam juntos o sagrado cafezinho no balcão de uma das cafeterias do Centro. Quando meu pai de 89 anos falta ao encontro, o comerciante telefona para saber o que aconteceu.
Numa dessas quebras da rotina, um dos sete filhos de seu grande amigo faleceu. Quando meu pai chegou à loja, no dia seguinte, soube da partida de Leonardo pouco antes de ele completar o 44º aniversário. Desde os 6 anos de idade, o menino e sua família lutavam contra uma diabetes muito grave que foi minando a saúde dele. Nos últimos anos, porém, a doença roubou a visão do rapaz.
– Pai, às vezes o homem precisa mergulhar na escuridão para enxergar, dizia Leonardo a seu Odonne, na tentativa de consolá-lo.
A família seguia unida para garantir a qualidade de vida do filho que necessitava de mais atenção. Em junho deste ano, porém, a situação dele se agravou. Na beira do leito do hospital, Seu Odonne perguntou ao filho se ele estava bem.
– O que eu quero saber é se vocês estão bem, questionou ele, falecendo minutos depois.
A última frase do filho foi lembrada, recentemente, por Seu Odonne. Com a voz entrecortada, ele tentava conter as lágrimas que teimavam em cair de olhos cujos cílios já estão brancos. Mas a pergunta do filho não pode ficar sem resposta:
Querido Leonardo, seus pais ficarão bem, porque o amor que liga vocês está mais vivo do que nunca.