Visão de futuro
Sempre que tragédias relacionadas a fenômenos naturais se abatem sobre algum lugar, logo são mobilizados argumentos sobre a fúria da natureza, a proverbial Justiça Divina e outras canalhices do gênero. Há quem ainda desça ainda mais fundo no poço da escassez de caráter. Tipo quem teve a sordidez de afirmar, ao sobrevoar, outro dia mesmo, uma cidade devastada por lama, que “Faltou, obviamente, uma visão de futuro por parte de quem construiu [as casas soterradas]”. Como se viver nas encostas (da cidade e da vida) fosse uma questão de escolha.
As chuvas que destruíram Petrópolis (RJ) atingiram toda a cidade, sem ver contracheque, localidade, raça, idade ou qualquer marcador de diferença. As pontes vermelhas que unem dois lados do Centro Histórico da cidade estão carregadas de destroços, galhos, carros. De gente. A Casa da Princesa Isabel recebeu um automóvel no jardim, por cima do muro, carregado pelas enchentes. O Palácio de Cristal está em estilhaços. Não se distinguia, no coração da cidade, a “Avenida”, o que é calçada, asfalto, barro, carro, ônibus, ferragens, móveis, cadáver. Virou tudo um lamaçal a céu aberto. O trauma é coletivo, social, perene: dói em qualquer pessoa que vive ou tem relação com a cidade que até hoje paga mesada à dita família imperial – propositalmente em minúsculas. O que a tempestade levou nada traz de volta. A ninguém.
Mas a ferida não lancina igual para todo mundo. Tragédias ambientais são sempre, em grande parte, consequências da atuação humana sobre a natureza. Por isso mesmo, é preciso entendê-las observando como elas se abatem sobre as diferentes classes sociais e sob um viés racial. Segundo reportagem do portal UOL, a Prefeitura do município sabia, desde 2017, da existência de 15 mil imóveis em risco na área da tragédia de 2022. O levantamento foi feito por meio do Plano Municipal de Redução de Riscos contratado pelo município com recursos federais.
Por que não foram implementadas políticas de prevenção nestas áreas de risco, ocupadas pela população vulnerabilizada? Por que algumas regiões são mais afetadas por desastres ambientais do que outras? Quem vive nas regiões em que a lama varreu e destroçou vizinhanças inteiras em questão de segundos? Quem tem a chance de reconstruir a vida, ainda que com o coração em frangalhos? Por que sempre quem “perde tudo” é quem “tem nada”? De quem é roubada qualquer possibilidade de visão de futuro?