Tenho andado nos sapatos de Adélia Prado. Apertam-me os pés, porque me falta um mundo de destreza e genialidade com as palavras, mas calço-os mesmo assim. Enquanto caminho, penso – pretensiosamente – que o mundo anda me entortando de um jeito parecido ao que um dia revirou a mulher desdobrável. Eu sou. Fui até ao oftalmologista para garantir que não se tratava de um mal das vistas, mas sigo enxergando bem. O que acabou foi a poesia, como quando acaba a luz. Será que volta?
Como Adélia, agora quando olho pedra, vejo pedra mesmo. Acho graça que a juventude use “literalmente” de forma errada: “eu literalmente boiei naquela aula”. Caso não se trate de aula de natação, tenho um pouco de inveja, confesso. Porque venho carregando um cansaço doído da materialidade das coisas.
Se digo, por exemplo, que escrevo aqui com o peito rasgado, tenho uma cicatriz (discreta, verdade) de fora a fora que endossa os termos. Quando ouço que espancaram um homem preto até a morte, quisera eu que fosse figura de linguagem, é descrição metódica. Tem até um assombroso VAR para o tira-teima. Se leio sobre nazismo em pleno 2022, não é um exagero retórico denunciando posturas extremistas. É defesa explícita do “direito” de sê-lo, com saudação hitleriana em rede nacional para ilustrar.
Sigo por aí procurando por pedregulhos que transbordem seu estado de corpo duro e sólido, para que eu veja neles outra coisa. Algo além de pedra por pedra. Caso encontre, planejo tacar com toda força na vidraça da literalidade, caminhar entre os caquinhos e chegar ao outro lado, onde agora vivem as metáforas. Aprisionadas. Veja só, parece que encontrei um pedrisco promissor, afinal.