A vida imita a arte (ou vice-versa)
Embora tente evitá-los como jornalista, sou defensora de que os clichês têm seu valor. Mais que isso, têm uma veracidade inegável, caso contrário não teriam sido promovido a tal status. Sempre ouvi dizer que a arte imita a vida, e também que a vida imita a arte, depende do contexto. Cada vez mais, tenho certeza de que sim. A arte é tão carregada de subjetividades que não raramente a linha entre criador e criatura, entre obra e artista, é tão tênue que quase invisível.
Veja Frida Kahlo, por exemplo. Suas pinceladas materializam a vida carregada de sofrimentos, desastres, dores físicas e emocionais, mas também de resistência da pintora mexicana. “Moonlight”, ganhador do Oscar de melhor filme deste ano, narra a jornada de um homem negro ao longo da vida, tentando entender a própria identidade e sexualidade, e sofrendo abusos físicos e emocionais nesta autodesconberta contínua. O filme é do diretor Barry Jenkins, que cresceu com uma mãe viciada em crack. Carly Simon chamou Warren Beatty de babaca pretensioso pro mundo todo ouvir e fazer couro, na bela e poética “You’re so vain”. Eu que nem artista sou, ponho muito de mim e do que vivo no que escrevo.
Mas de fato, um dilema a la Tostines (referência que entrega minha idade, ok) se instala: a arte imita a vida ou a vida imita a arte? Terá José Mayer interpretado dezenas de canalhas abusadores de mulheres com base em sua experiência em assediar colegas de trabalho, como denunciou a figurinista Susllem Meneguzzi? Ou será que de tanto interpretar tipos que pensam com o pênis e se vangloriam da fama de “bem-dotado”, como Osnar, de “Tieta”, Zé Mayer nunca mais saiu do personagem? Jamais saberemos.
O artista mesmo se valeu da fina risca entre ficção e realidade, dizendo que as denúncias de assédio diziam respeito a ações de seu personagem na última noveladazoito, Tião-Qualquer-Coisa, um mau-caráter machista, misógino e que violenta mulheres. Só para depois de uma reação de atrizes, apresentadoras e outras colegas de trabalho, vestindo o que a gente já sabe, “Mexeu com uma , mexeu com todas”, Zé voltar atrás, e pedir desculpas pelas “brincadeiras” machistas. Não é brincadeira, Zé. Um ator deveria ter melhor noção de comédia.
Ao “pedir desculpas”, José Mayer achou estar em busca da redenção, como Zé do Burro, de “O pagador de promessas”, que interpretou lá pelo fim dos anos 1980. Mas ao reduzir os atos abusivos contra a colega como “piadas fora do tom”, o ator há de carregar nas costas a vergonha, o ostracismo e, quem sabe, as consequências legais de violar a integridade física e moral de uma mulher. Tal e qual a cruz que personagem da ficção leva no lombo por quilômetros a fio. Em pleno 2017, não haverá mais silenciamento que proteja assédios.