Um dia ele foi embora
Um dia ele foi embora, sem ter a menor dimensão de como sua generosidade transforma vidas, seja por desapego ou por modéstia. (Estou há mais de 20 anos tentando descobrir). Embora eu sempre soubesse que o momento chegaria, fiz ouvidos de mercador a vida inteira à voz que insistia em dizer, no fundinho da minha cabeça: ele não vai estar aqui para sempre. Não foi sem aviso – ele jamais faria isso -, não foi sem me contar os planos quando eles ainda eram segredo, não foi sem despedida anunciada e executada. Mas lá foi ele, ganhar o mundo, e a cadeira onde ele se sentava já não tem aquela cabeça que vinha raleando de cabelos há algum tempo – ele vai me matar por dizer isso -, embora não esteja vazia, porque a vida segue, e as engrenagens não podem parar de rodar.
Nem sempre (falo sobre os fios de cabelo, no caso) foi assim. Uns muitos pares de anos atrás, quando éramos crianças, a cabeleira muito preta e lisa tinha uma franja que quase chegava a cobrir os olhos. Ele era o menino mais legal da escola, o mais divertido, e sempre inventávamos piadas internas de que ele não se lembra mais hoje em dia – fico pau da vida, mas deixo passar. “Júlia, você pode chamar alguém da sua sala pro aniversário do seu irmão”, minha mãe disse uma vez. Eu o convidei, ele foi. Temos fotos dessa época, de quadrilhas e festinhas com bolo e brigadeiro, das quais nossos amigos da vida adulta morrem de rir: “Não acredito que vocês se conheciam crianças!”.
Na verdade, ele já tinha ido embora antes. Mudado de colégio, mudado de cidade, mas naquela época em que a gente é meio adolescente e blasé, e não se importa tanto com os amigos de infância que ficam ou vão, porque a vida tem tanto a ser descoberta que mal dá tempo de fazer a contagem. Mas em outra mudança crucial na vida, acabamos na mesma Faculdade de Comunicação da UFJF, que nos preparou para o encontro que, mais tarde, nos reaproximaria de vez, a redação da Tribuna de Minas. Como era de se prever, o menino mais legal do mundo se tornou o cara mais legal do mundo. O mais íntegro, mais justo, mais generoso, mais empático – “sin perder el sarcasmo jamás”.
Entre pautas, bloquinhos e computadores, viramos adultos de vez. Mudamos de funções no jornal; vimos gente entrar e sair; rimos até a cara doer; nos mudamos para uma nova sede; ele virou meu chefe; casei; descasei; e, por fim, ele casou, mudou, e – claro- me convidou: “Vê se vai no sul de Minas”. É claro que eu vou. Agora ele vai fazer o que é apenas justo, espalhar mais de doses imprescindíveis de Guilherme em outros cantos deste mundo às vezes tão duro, tão cheio de ódio, de intolerância e de medo do futuro. Se eu não o temo é porque tenho certeza de que o Gui irá cada vez mais longe, e é impossível que cada espacinho que ele ocupe não se torne melhor só por tê-lo ali. De onde estiver que eu esteja, estarei sempre morrendo de orgulho e saudade: “Tá vendo? Eu sou amiga do Guilherme”, de peito estufado. Mas vez ou outra, olhando para aquela cadeirinha, eu vou me permitir, muito egoistamente, sentir uma pontadinha de saudades daqueles cabelinhos tão ralos quanto eram acolhedores os abraços que eu encontrava por ali. Só até o próximo encontro.