Cia de Inventos completa 10 anos com teatro de marionetes em Tiradentes
Bernardo Rohrmann pensa os espetáculos e constrói os bonecos teatrais para sempre despertar no público algo de diferente; já são mais de 40 anos trabalhando na área
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São dois anjos que recebem na porta. O teatro tem cadeiras de madeira, bem na Rua Direita de Tiradentes, com um palco pequeno e de cortinas de veludo vermelhas que escondem os bastidores responsáveis pelo mistério. No mesmo espaço, está o menor bloquinho do mundo, feito com personagens variados. Durante a alta temporada, todo dia, às 17h30, tem um novo espetáculo, feito para o público entre 3 e 100 anos. Só não funciona quando estão dando oficina fora de Minas Gerais. Apesar dos horários serem os mesmos, a cada apresentação, alguma coisa muda: seja a forma com que os personagens se movimentam, como reagem à plateia ou como a plateia reage a eles. A frase que guia Bernardo Rohrmann, que pensa os espetáculos e faz os bonecos em um processo bem artesanal, é sempre a mesma, que conheceu no teatro belga: “Existem pessoas com alma de madeira por não acreditar nas pequenas pessoas de madeira que possuem uma alma”. Já são dez anos funcionando no mesmo espaço, na cidade histórica, com o teatro de marionetes da Cia de Inventos. E mais 43 anos se dedicando a essa arte, que precede o cinema e até o teatro com atores, e mesmo diante de tantas inovações tecnológicas, consegue despertar no público sempre algo de diferente.
Nascido em Belo Horizonte, Bernardo foi para Tiradentes há mais de 30 anos, pela ligação que a família já tinha com a cidade. Foi na capital que ele aprendeu a fazer os bonecos, com o grupo Giramundo, e a partir daí foi desenvolvendo o que queria fazer. Ele vem de uma família que sempre incentivou a arte e encontrou nas marionetes uma forma de aliar várias formas artísticas. “O que me faz gostar tanto dos bonecos é a forma sobrenatural que eles exercem sobre as pessoas, essa magia e encantamento. É um ser encantado por si só. Quando é pendurado, tem uma força, mas quando começa a movimentar, vê uma personalidade e uma força expressiva que consegue dialogar muito bem com o público, e um público de todas as idades.” Desde que começou, já foram feitos mais de 100 personagens para as próprias apresentações e mais de 500 para vender, dar a outras companhias de marionetes ou trabalhar em oficinas. Foi também o artista que fez os bonecos do clipe “Olhos certos”, de Detonautas, que chegaram a mais de 8 milhões de visualizações no YouTube.
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Quem passa perto da casa, que segue o padrão da cidade das grandes janelas e cores de Tiradentes, consegue ver uma das “pessoinhas” já adiantando do que o espaço se trata: um fotógrafo fica na janela, pronto para um clique. É esse boneco que também começa o espetáculo em cartaz, “Marionetes a fio”, que apresenta os personagens por meio de números musicais. Esse espetáculo já tinha sido feito antes por Bernardo, e agora volta aos palcos, repetindo alguns nomes do elenco e trazendo outros que ele foi fazendo ao longo dos últimos anos. “Eu sempre me dediquei ao teatro de bonecos. Faço a partir da experimentação e de usar sempre a imaginação, que é o mais importante. A partir disso, vem a concepção do boneco e da cena, para ir arriscando e construindo. Com o boneco, a gente trabalha o movimento, então é preciso pensar como ele vai estar em cena e, então, definir como ele vai ser”, conta sobre esse processo.
Esse teatro de bonecos é uma arte muito antiga, como ressalta, e começou quando os seres humanos queriam explicar o mundo, por meio das divindades, mas não podiam eles mesmos encarnar essas histórias. “O teatro começa como uma expressão religiosa para depois se tornar algo com o caráter profano. Então, desde esse começo, já vem carregado com essa força para o ser humano. Quando estamos manipulando os bonecos e criando para colocar em cena, percebemos isso”, diz. E os bonecos feitos por ele passaram a ter suas próprias histórias também, além daquela que ele pensa, quando toma as decisões práticas de como cada personagem vai ser. “A gente pensa na idade de como o boneco é concebido, mas como o tempo vai passando, parece que aquele boneco também vai amadurecendo. O Johnny, que é o guitarrista, faz 40 anos em cartaz esse ano. Ele tem mais de 3 mil apresentações. Já é um veterano.”
Do espanto ao fascínio
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Como acontece com muitas pessoas, a primeira vez que Bernardo viu uma marionete, aos 3 anos, teve muito medo. Ficou apavorado. Esse processo se repete vez ou outra, principalmente quando turmas maiores chegam à Cia de Inventos. “Sempre tem um ou outro que não pode nem ver”, conta. Para ele, esse estranhamento está justamente na similaridade que os bonecos têm com os seres humanos, e como conseguem emular gestos de forma tão próxima. Ele se lembra, por exemplo, como em uma apresentação, uma das crianças foi se espantando com isso, conforme via o show: “Essa pessoinha anda. Ele ri e ele chora. Ele sente!”. No caso de Bernardo, esse “susto” com a capacidade dos bonecos se tornou um fascínio que ele levaria para a vida toda.
O boneco é também um objeto de criação, que leva tempo para ficar pronto. “Eu sempre falo que, considerando um boneco para espetáculo, em uma semana consigo fazer um inteiro com pintura, figurino e tudo. Mas o principal está no mundo das ideias, é a concepção daquilo. Às vezes é muito rápido; outras vezes eu começo a construir e paro, fico em um processo. Tem boneco que retomei depois de 3 anos, por exemplo. E quando chega uma hora dá um estalo”, conta. Tem, ainda, a pesquisa dos materiais. Apesar de fazer muitos bonecos tradicionais, que são os de madeira, ele também trabalha com tubos, tecidos, lãs, sementes, botões e cabaças. Esse trabalho com materiais inusitados ele também desenvolve com a ONG Brasil Sustentável, que leva esse trabalho com as marionetes para escolas do interior do Norte, Nordeste e Centro-oeste, incentivando que as pessoas possam usar materiais acessíveis para elas nesse momento de criação.
Mundo da imaginação
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A pandemia de Covid-19 foi um marco para todo trabalhador da cultura, e com Bernardo, que conta com o apoio de seus filhos Miguel e André nos trabalhos da companhia, não foi diferente. Mesmo depois do fim do isolamento social, ele notou como o tempo enclausurado e focado no ambiente digital mudou a relação das pessoas com as marionetes – principalmente das crianças. Relembra até de um caso, quando um pai e filho vieram ao espetáculo, e o filho estava muito agitado durante a apresentação – só conseguiu se concentrar quando o pai foi filmando a apresentação, e pôde ir assistindo pela tela o que se passava. Aos poucos, esse pai foi tirando o celular, para que a criança se concentrasse no palco mesmo. Ele percebe que, assim como aconteceu nesse caso, há uma vontade de recuperar algo lúdico e que incentive a imaginação.
Com o tempo, também foi algo que entendeu que precisava ser passado de geração para geração, em um público que ele mesmo foi formando. “Muita gente vem aqui sem nunca ter assistido a um teatro de bonecos na vida. Mas também estamos vendo acontecer, ao longo desses anos todos, de eu receber pessoas que foram trazidas quando crianças, e que agora vêm com os próprios filhos”, diz. Antes do espaço atual, ele se apresentava em uma pousada, já em Tiradentes. Para ele, a vontade de fazer e de assistir às marionetes é algo que ele sempre vai lutar para continuar existindo, até pela conexão ancestral que se cria. “É um sonho poder fazer isso no interior. Claro que Tiradentes é uma cidade privilegiada, porque é pequena, é histórica e tem um fluxo interessante de gente, com os festivais e tudo. Mas, ao mesmo tempo, é um movimento forte que fazemos de resistência. (…) No palco, o boneco consegue fazer movimentos que um ator não consegue fazer. A partir do momento que a gente vai mergulhando nesse mundo, é algo que só o cinema pode fazer, com efeitos especiais. Mas a gente consegue criar isso, brincar com o mundo encantado. São coisinhas pequenas e que tocam as pessoas.”
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