Inferno como ração diária
Não houve violência generalizada, saques a supermercados, motins enfurecidos ou maciças manifestações à esquerda ou à direita. A sociedade brasileira reagiu com assombrosa serenidade ao seu próprio sequestro, até mesmo manifestando solidariedade inicial aos caminhoneiros em greve. Foi esta atitude que impediu a transformação da conjuntura numa sucessão enlouquecida de fatos fora de qualquer controle. Mas sempre existem idiotas que gostam de brincar com a sorte, como aqueles que praticam a roleta russa, e que nos ameaçaram com o caos. E por isso devemos aprender com o risco da catástrofe que poderia ter acontecido, para que ela não venha a acontecer.
Nenhuma sociedade, em especial a nossa, pode ficar refém de um setor que, por erro ou descaso dos governos e do Estado, possui capacidade estratégica de ferir e parar o país, com consequências imediatas e a longo prazo. Do mesmo modo, nenhuma sociedade pode ou deve ser sacrificada por decisões puramente técnicas de uma empresa monopolista, como a Petrobrás, para se reerguer após ter sido saqueada por um bando de predadores. Agora, depois do leite derramado, todos – aí incluindo nossos enigmáticos candidatos a presidente – soltam o verbo para dizer que é preciso mudar esta dependência do Brasil do transporte por caminhões e pululam ideias para preservar a autonomia da Petrobras e ao mesmo tempo proteger o bolso do contribuinte. Por quer isso não foi tentado antes?
E devemos sempre, caro leitor, desconfiar de paralisações que envolvem simultaneamente trabalhadores e patrões. Para alguns economistas, o acordo para pôr fim à greve beneficia bem mais às empresas de transporte – que obviamente patrocinaram uma ofensa à Constituição ao realizarem um locaute – do que aos caminhoneiros autônomos, que mereciam a simpatia da sociedade. Este sequestro da sociedade, patrocinado pela força das grandes empresas mostra bem a face do capitalismo brasileiro: o vício em subsídios e favores estatais e uma gélida indiferença em relação à sociedade brasileira e aos seus próprios empregados, cuidando apenas de seus interesses imediatos.
É este puro jogo de interesses que cria irresponsavelmente a cena para os jogadores de roleta russa, para os patetas que berram um descabido “Fora Temer” a quatro meses das eleições ou para os energúmenos que confessam sua imbecilidade ao dizerem que querem e precisam viver sob baionetas, bradando por uma intervenção militar.
A serenidade da população brasileira nesta crise monumental, e também dos próprios militares, mostra que há um caminho a ser percorrido com paciência e paixão: a aposta na democracia como a única forma de reconstruirmos o nosso sistema político, hoje distante da sociedade, e de domesticarmos esse capitalismo predatório que nos dá o inferno como ração diária.