Chico não desafina
Chico Buarque é um artista incomparável, e sua obra musical e literária é reconhecida em todo o mundo. Mesmo assim, foi abordado há poucos dias numa esquina carioca e xingado por um grupo de “playboys”, três perfeitos representantes da elite paulistana. O motivo? Suas posições políticas favoráveis ao Governo Dilma e ao PT. Além de artista genial, Chico pode ser considerado, como definiu o pensador marxista italiano Antonio Gramsci, um intelectual orgânico, qualidade daquele que “empresta sua testa” à luta pela igualdade social. Sem jamais abdicar do espírito crítico ou da liberdade criativa, alicerces do seu trabalho, ele se manteve fiel ao compromisso tácito de denunciar a injustiça, o arbítrio e todas as formas de opressão. Tem sido assim desde o antológico “Pedro Pedreiro”, personagem do seu primeiro disco, editado em 1965.
Essa visão de mundo libertária, para usar a expressão consagrada por outro pensador marxista, Michael Löwy, permeia tudo que ele faz. Chico é afinado em todos os setores da vida, cordato e afável, mas fala o que pensa, sem se preocupar com a censura alheia. Tornou-se um artista visceral, deixando de ser, por vontade própria, uma unanimidade nacional.
Suas posições políticas, agora rudemente atacadas por uma espécie de milícia da intolerância, são bastante conhecidas. Estão, por assim dizer, em linha de continuidade com as convicções que seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, defendeu ao longo da vida, tendo produzido uma das interpretações mais importantes sobre a formação social brasileira.
Em “Raízes do Brasil”, Sérgio identifica as razões do nosso atraso como consequência do processo de colonização, que transpôs para a vida pública relações próprias da vida privada. O peso do compadrio se sobrepõe à cidadania, tornando o Estado instrumento de manutenção de privilégios, e não promotor do bem comum, como ocorre nos países desenvolvidos.
A estrutura de privilégios, marca de um Brasil feudal, enraizou-se de tal forma que perdura até hoje e condiciona a distribuição de recursos públicos, quase sempre abocanhados pelos mesmos grupos econômicos e sociais. Não é à toa que vem de São Paulo a maior resistência à mudança de rumos adotada pelas gestões petistas.
A perda de dinamismo de alguns setores da economia paulista tem muito a ver com a supressão de vantagens conquistadas em outros governos. A inversão de prioridades no que diz respeito à locação de investimentos públicos, que passaram a encontrar outros destinos, e não apenas o eixo Rio-São Paulo, irritou grupos que estavam acostumados a tutelar o Tesouro Nacional. O fortalecimento de programas sociais, que tiraram mais de 30 milhões da miséria e dinamizaram economias estagnadas nos rincões do país, é visto como uma afronta pelos senhores da “Casa Grande”. Eles estavam acostumados a usar chicotes e grilhões para manter o controle sobre a senzala, que, aos poucos, vai se emancipando graças às oportunidades de ensino multiplicadas em 12 anos de governos populares.
Diante do sucesso das políticas de inclusão social, só restou à direita instigar a classe média conservadora, tendo como mote uma velha conhecida: a corrupção, que, ironicamente, só nos governos do PT tem sido sistematicamente investigada e combatida, mesmo com sérias distorções, como no caso da operação “Lava jato”. Como nos governos Vargas, JK e Jango, também pautados pela defesa do patrimônio nacional e pela ampliação de direitos, vozes nada respeitáveis passaram a bradar contra o “mar de lama”, com o auxílio, é claro, do oligopólio dos meios de comunicação, expressão viva da estrutura de privilégios, que cresceu sob a sombra dos governos militares e do processo de privatizações comandado por FHC. Para os falsos vestais de hoje, nada disso importa, desde que o PT seja desalojado do poder (não pelos seus erros, sugere a hipocrisia burguesa, mas pelos acertos). É a cartilha que segue o juiz Moro, os procuradores (incluindo Janot) e os delegados da Polícia Federal, aqueles que vazam o que convém aos golpistas e protegem próceres da oposição também envolvidos em corrupção. Só não contavam que o Ministério Público suíço fosse pegar o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, figura central da estratégia golpista. Tão pouco imaginavam que as ruas fossem, aos poucos, trocar de lado, percebendo as manobras daqueles que querem “mudar para que tudo fique como está”, expressão do cinismo de nobres italianos, relatado por Tomasi di Lambedusa, que se aplica muito bem à esperta elite brasileira.
Felizmente, a arte e a inteligência de Chico Buarque estão a serviço das transformações que precisam ser aceleradas no Brasil, ameaçadas hoje pela estupidez dos insensíveis. Não se trata de uma causa partidária, mas uma exigência democrática. Um país rico não pode ser habitado por um povo miserável, sem saúde e escola de qualidade. O ônus desse processo civilizatório deve ser repartido entre todos, particularmente entre os ricos, cuja riqueza provém do trabalho dos pobres, da terra mal dividida e, com frequência, do achaque aos cofres públicos. O povo, assim como, “Pedro Pedreiro” e “Carolina”, cansou-se de esperar e assistir, da janela, à banda passar. Como o próprio Chico canta em apoio à luta dos estudantes contra o fechamento de escolas em São Paulo, “ninguém tira o trono do estudar, ninguém é o dono do que a vida dá”.
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