‘O Presidente está morto’: Há 40 anos, morria Tancredo Neves

No domingo 21 de abril de 1985, repórteres da Tribuna captavam os sentimentos que tomavam Juiz de Fora para edição especial sobre a morte do então presidente; amigo íntimo fala sobre quem foi o homem para além do estadista


Por Hugo Netto

22/04/2025 às 06h10

“O Presidente está morto”. Assim noticiava a manchete da Tribuna, em edição extra publicada na segunda-feira, dia 22 de abril de 1985. Abaixo da foto de Tancredo Neves, que ocupava toda a capa, sua frase célebre: “Não há Pátria onde falta democracia”.

As matérias do dia se dedicavam a transmitir os sentimentos que tomavam Juiz de Fora, desde o bar até o ambiente acadêmico. Na publicação que abria a edição, o repórter Geraldo Muanis relatava que, no dia da morte do presidente, mostrava a um amigo jornalista de São Paulo a cópia de um telex (serviço internacional de transferência de mensagens que consistia em uma rede de teleimpressoras conectadas por um sistema de centrais) recebido na redação da Tribuna, mais de um mês antes, comunicando que Tancredo passaria por uma cirurgia.

“Às sete horas da noite”, ele segue, “cheguei ao bar ‘Caros Amigos’, na Rua São Mateus. Lá, logo de cara, pedidos de informações acerca da saúde do Presidente da República. Comuniquei-lhes que o quadro clínico permanecia extremamente grave, conforme o último boletim médico, acentuando que a pressão arterial de Tancredo Neves estava baixa – 9 por 5. O médico Bruno Bergamini comentou: ‘É irreversível’. Vida que segue. Continuamos ao som de ‘Marina’ (de Dorival Caymmi), ‘Galope’ (de Gonzaguinha) e outras músicas, bebendo e conversando descontraidamente”. 

Até que, às 22h20, o então editor nacional da Tribuna, Ronaldo Dutra Pereira, ligou para a “Cabana do Traíra”, em frente ao Caros Amigos, chamando outro repórter, Aníbal Pinto. “Aníbal, enquanto conversava com Ronaldo, revelava na face algo que toda a Nação brasileira sabia que seria, fatalmente anunciado, mas que ninguém queria ouvir ou acreditar. Afinal, em Tancredo estavam depositadas todas as esperanças de um futuro melhor. Mais: estava sepultado um passado militaresco de arrogância, intolerância, corrupção e outros tantos desvarios.”

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(Foto: Arquivo TM)

‘Informamos, mas sentimos’

Logo depois, Muanis foi chamado. “A Tribuna vai circular amanhã?”, se perguntavam os dois e Leopoldo Siqueira, mais um repórter. “Tem de circular, era o consenso.” O dono da Cabana do Traíra baixou as portas e liberou o telefone para as primeiras entrevistas, e foi, ele próprio, uma fonte: “Para ele, Tancredo Neves representava a esperança, uma esperança de todos que já se foi”.

A partir daí, ele informa e relata as reações de algumas pessoas que estavam pelas ruas, desde o temor ou o rechaço de um novo golpe, até a vontade de que fosse realizadas novas eleições diretas, pela desconfiança que alguns tinham da capacidade de José Sarney governar. Principalmente jovens em bares relatavam esperança.

“Corações desertos, viemos cumprir nosso dever. Dentro do carro, pouca conversa para quem é jornalista. Estamos todos no mesmo barco. A estrada continua para sempre, a esperança é nossa irmã e nesta hora somos todos iguais. Informamos, mas sentimos e vivemos a mesma angústia”, desabafa, sobre o caminho dos três até a redação.  

Muanis também assina a nota “Na praça, termina o show. No bar, o choro de um garçom”, em que prossegue a história: “A música parou, todos ouvem a entrevista que o chefe do Departamento de Jornalismo da Super B-3, Paulo César Magella, faz com o juiz de Direito Antônio Carlos Ferreira Botti. Um amigo, Patrese, comenta: ‘Estava na Praça Jarbas de Lery, onde ‘rolava’ um som. Quando anunciaram a morte do Tancredo, fez-se um minuto de silêncio. Anunciaram que o show havia acabado e alguém ainda ousou protestar, jogando alguma coisa no ‘carinha’ que deu a notícia'”. Nas dependências da Tribuna, onde preparavam a edição extra, contou que “foi precisamente às dez para as duas da madrugada. A redação parou por instantes para ouvir Fafá de Belém cantando o Hino Nacional Brasileiro. Alguns cantavam”.

‘Amanhã é feriado’

Os outros repórteres citados tiveram igual importância nos relatos. Leopoldo Siqueira percebeu, ao menos inicialmente, o oposto do temor ou da tristeza vista por Muanis: “Durante alguns segundos, as expressões eram de quem procurava adivinhar mais uma ‘brincadeira’, diferente das muitas que surgiram desde o internamento do Presidente. Insensíveis, ou procurando apenas ser engraçados, alguns boêmios se animaram com a perspectiva de levantar um brinde original, tomar umas cervejinhas a mais. Afinal, amanhã ‘deveria ser feriado’, afirmavam”.

Mas, depois, as rodas de samba e bailes iam terminando mais cedo, “o domingo acabava de ficar sem graça. E o país, sentindo-se um tanto órfão”. Pontos de encontros tradicionais da juventude, São Mateus, na altura das ruas Dr. Romualdo, Oswaldo Aranha e Carlos Chagas, ou na Santo Antônio com Floriano Peixoto, esvaziaram-se repentinamente. O assunto mudou, diz a nota “No rádio toca os Paralamas. Nas mesas, a conversa ‘muda’”. E a FM troca a banda pela triste notícia.

Os barzinhos que possuíam aparelhos de TV, esses sim, ganhavam novos fregueses, “que não dispensaram uma cervejinha. Mas a tomavam aos goles, olhos grudados na retrospectiva política de Tancredo Neves”. “Os mais velhos balançavam a cabeça. ‘Que coisa… Por que foi acontecer isso logo agora…’, disse um. Os que andavam de um lado para o outro ouviam rumores e, certamente, estranharam quando as ruas iam ficando rapidamente, vazias e tristes. Paravam, perguntavam e sumiam dentro da noite fria, cada vez mais fria.”

‘Clima essencialmente emotivo’

Já Aníbal Pinto se ocupou de entender a ciência: “A economia deve ser mantida, pelo menos nesse período de transição”, replicava a opinião do diretor da Faculdade de Economia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Alfredo Alencar Saggioro. 

O economista acreditava que, “mesmo que Tancredo estivesse no Poder, alguma coisa seria mudada com o decorrer do tempo, até porque ele era um homem que queria ver as dificuldades econômicas do País solucionadas”. O professor ainda salientou que mesmo com a morte, todos esperavam ver consolidada a Nova República, criada por Tancredo, através da Aliança Democrática. “Temos de ter muito otimismo para que possamos ver a democracia consolidada, de modo que a sua luta não tenha sido em vão. Acredito que esse período de transição trará novos rumos para a economia brasileira”, afirmou o economista à época. 

A nota “Alfredo Saggioro espera que democracia seja consolidada” seguia destrinchando os possíveis desdobramentos, ressaltando a necessidade de mudanças no país, e que o mais importante não seria a rigidez que poderia vir, mas sim a forma com que os ministros se portaria.

Mesmo no ambiente acadêmico, Saggioro destacou que o país vivia, naquele momento, um clima essencialmente emotivo e que todos tinham expectativa de que as pretensões de Tancredo Neves fossem levadas em frente: “O povo esteve unido durante a sua campanha para a Presidência e durante a sua doença. Agora, temos que estar unidos para transformar em realidade a vontade do presidente Tancredo Neves”, finalizou.

‘Começa o adeus’

Na terça-feira, dia 23, o corpo de Tancredo Neves chegava, às 13h, em Minas Gerais, cumprindo parte do cortejo fúnebre iniciado no dia anterior em São Paulo e Brasília. “Comovida, a Nação acompanha os funerais de Tancredo Neves, o ‘mártir da democracia’”, dizia a capa da Tribuna, logo abaixo da manchete “Começa o adeus”.

O foco da edição foi repassar como foi o dia seguinte à morte. Apesar dela, a cidade permaneceu tranquila, nenhuma manifestação popular, segundo as notícias da época. “A Câmara Municipal também não funcionou, respeitando o feriado nacional decretado pelo Governo federal. No entanto, alguns vereadores estiveram no Legislativo concentrados em frente a um aparelho de televisão acompanhando o noticiário de todo o acontecimento.”

Somente à noite, duas programações foram realizadas na cidade: a celebração de uma missa, na Catedral, às 18h, que contou com a participação de um número reduzido de pessoas, já que o evento não pôde ser tão bem divulgado. Estavam principalmente políticos, assim como na segunda atividade, que teve início na Câmara às 19h.

A edição também trouxe a relação do célebre juiz-forano Clodsmidt Riani com Tancredo: “Quando foi preso logo após o movimento de março de 64, o então líder sindicalista descobriu que muitas das pessoas que se diziam amigas não corresponderiam às suas expectativas. Esqueceram-se dele. Por outro lado, algumas amizades se consolidaram. Uma delas foi a do então deputado Tancredo Neves. Discreto, ele não se negou a ajudar o amigo de jornadas políticas”. 

Até a quinta-feira, dia 25, todas as edições se voltavam quase inteiramente a Tancredo. Na quarta-feira, 24, a manchete “Adeus, Tancredo”, acompanhada das informações, em destaque, do início do sepultamento às 17h, do total de cinco mortos e 200 feridos durante o funeral, além do discurso e da emoção de Dona Risoleta, esposa de Tancredo. Já no último dia – antes de seguir para desdobramentos no dia 26 como “Sarney não vai mudar ministério” e “Tarcísio muda estratégia com Nova República” – a manchete foi, em letras garrafais e caixa alta “Adeus”. Acima, “Tancredo Neves, herói da democracia e da esperança, descansa em sua terra”.

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Capa do dia 23 de abril de 1985 (Foto: Arquivo TM)

Preocupação com a opinião pública

“Fiz até algumas anotações, porque falar do Tancredo é uma coisa muito complicada”. Silvio Abreu Jr., juiz-forano, deputado federal por cinco mandatos, e secretário de Interior e Justiça no Governo Tancredo em Minas, se explica: “no meu entendimento, é um grande político, um grande estadista, um grande administrador, foi um Governo maravilhoso em Minas Gerais, a primeira experiência dele no Executivo, altamente realizador”. Além disso, Tancredo foi também padrinho de casamento e amigo íntimo do pai de Silvio.

“Ele fez para mim, uma coisa que não fez para ninguém. Não foi ele que me contou não, foi a Dona Antônia, secretária dele.” Silvio se refere ao prefácio de “Aspectos da Luta Parlamentar”, livro que publicou em 1982. “Antes de ir para a gráfica, manda para o meu gabinete que eu quero te dar um presente”, disse o então senador.

 

Silvio Abreu Jr fala sobre morte presidente tancredo neves
Silvio Abreu Jr posa com um exemplar de “Aspectos da Luta Parlamentar”, cujo prefácio foi escrito Tancredo Neves (Foto: Leonardo Costa)

Silvio se recorda de casos em que percebe algumas características que teriam construído a imagem que o povo tinha do presidente. Na transição do Governo de Minas, por exemplo, conta que Tancredo acompanhou, pessoalmente, o antecessor até o carro, para que não sofresse nenhum ataque da população que se aglomerava em frente ao Palácio da Liberdade.

Em outro momento, Silvio e Tancredo foram juntos almoçar no apartamento do governador, quando ele viu uma grande mudança sendo preparada para o Palácio. Ele perguntou para a esposa, a qual só chamava de “minha filha”, o que estava acontecendo, e voltou dizendo que “corrigiu” a situação. “Nós temos que ter juízo na cabeça numa hora dessa. Não pode sair nenhuma taça de cristal daqui de dentro, porque, se for um caminhão de mudança para o Palácio, ninguém vai ver caminhão de mudança chegando. Mas, e quando nós tivermos que sair, o que a oposição vai falar de nós?”Acabou levando apenas as próprias roupas.

Além disso, segundo Silvio, ele se preocupava em tentar manter uma relação de carinho, mesmo com as dificuldades da hierarquia. “Era um grande amigo. Uma memória fulgurante. Em uma ocasião, ele fez um congresso de prefeitos no Palácio da Liberdade, e chamou os secretários todos. ‘Vocês ficam perto de mim. Alguns prefeitos eu vou lembrar, mas os que eu não conheço, fiquem perto de mim para falar o nome e eu poder cumprimentar’.”

Três meses de sofrimento

Naquele 21 de abril de 1985, Silvio considera que perdeu um pai, um parente próximo, ou um irmão mais velho. “Eu acho que o Brasil todo sentiu o mesmo. Mesmo aqueles mais distantes, a maioria da população era distante. Milhões de habitantes. Se mil chegaram ao lado dele para conversar com ele, foi muito. A imagem dele era essa”, acredita.

Com relação à cidade, Silvio, inicialmente, afirma que o amigo gostava muito de Juiz de Fora, mas retoca: “A expressão correta não é gostar. Ele tinha muito respeito com Juiz de Fora. Ficaram todas aquelas sequelas, a Revolução de 1964, partindo daqui, então, ele tinha muito respeito”.

O último contato dos dois foi na véspera da posse na Presidência, em Brasília, em uma missa no Santuário Dom Bosco. “Ele veio caminhando depois da missa, mas caminhando assim, muito devagar, muito devagar. E ele olhava os secretários, olhava os amigos próximos, e ele veio na minha direção e me apertou a mão com muita força, com a cara ruim. Dali ele entrou no carro. Dizem que ele não estava aguentando nem ficar em pé. Dali já foi levado para o hospital (…). Dali ele não saiu mais. Imagina, de janeiro de 1985, ele ficou sofrendo até 21 de abril, o dia da morte”.

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