Vereadores de JF querem livre acesso a repartições públicas municipais

Dez parlamentares defendem mudança na lei orgânica; proposta é alvo de questionamentos acerca de sua constitucionalidade em várias cidades do país


Por Renato Salles

20/04/2021 às 10h36- Atualizada 20/04/2021 às 17h44

A Câmara Municipal de Juiz de Fora deve discutir, em breve, projeto de emenda à Lei Orgânica do Município que já nasce destinado à polêmica. A proposição tem por objetivo central garantir aos vereadores, de forma individual e no exercício de seu mandato, livre acesso às repartições públicas municipais e áreas sob jurisdição municipal. Com isto, o que os parlamentares objetivam é ampliar o escopo de sua atuação fiscalizatória das ações do Poder Executivo municipal. No entanto, proposições similares já foram discutidas em outras casas legislativas que resultaram em questionamentos judiciais sobre sua constitucionalidade.

A proposta de emenda à Lei Orgânica pretende acrescentar um novo artigo à legislação vigente garantindo que os parlamentares terão livre acesso a repartições públicas municipais, podendo, inclusive, diligenciar “com acesso a documentos, junto a órgãos da administração pública direta, indireta e fundacional, devendo ser atendido pelos respectivos responsáveis, na forma da lei.”

O projeto iniciou sua tramitação na última sexta-feira e leva a assinatura de dez vereadores: Sargento Mello Casal (PTB); Tiago Bonecão (Cidadania); Zé Márcio (Garotinho, PV); Dr. Antônio Aguiar (DEM); Nilton Militão (PSD); Kátia Franco Protetora (PSC); Bejani Júnior (Podemos); André Luiz (Republicanos); Marlon Siqueira (PP); e Julinho Rossignoli (Patriota).

O número corresponde a mais da metade das 19 cadeiras parlamentares e atende à previsão do regimento interno do Poder Legislativo. O texto define que propostas de emenda à Lei Orgânica municipal só podem ser apresentadas pelo prefeito ou por, pelo menos, um terço dos membros da Câmara, que significa um mínimo de sete signatários.

Fiscalização individual por parlamentar já foi questionada na Justiça em outras cidades

Propostas de cunho similar foram alvo de ações direta de inconstitucionalidade (ADI) em outras cidades. Há, inclusive, jurisprudência no Tribunal Regional de Minas Gerais (TJMG).

Em apreciação de dispositivo do município de Centralina, que previa “o direito dos vereadores de terem acesso às repartições públicas para se informarem sobre qualquer assunto de natureza administrativa, mediante oficialização do setor de protocolo da Prefeitura, com antecedência mínima de 24 horas”, o TJMG julgou procedente apontamento acerca da constitucionalidade da medida, em ADI proposta pelo comando da Prefeitura.

A ADI em questão foi apreciada em 2016. Relator da ação na ocasião, o juiz Paulo Cézar Dias reconheceu que “uma das prerrogativas da Câmara Municipal é a de fiscalização dos atos do Executivo”. Contudo, considerou que a inclusão do dispositivo prevendo a intervenção direta dos vereadores nas repartições públicas municipais “não se coaduna com dispositivos da Constituição da República, reproduzido na Carta Maior do Estado”.

Em Cuiabá

Em decisão mais recente, em 2019, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ MT) declarou inconstitucional a emenda à Lei Orgânica de Cuiabá que dava aos vereadores a prerrogativa de fiscalizar pessoalmente os órgãos públicos municipais. A decisão foi unânime e seguiu manifestação do relator do processo, desembargador João Ferreira Filho.

Para o desembargador, o dispositivo fere o princípio da harmonia e separação entre os Poderes, ao criar mecanismos de fiscalização direta pelos vereadores, sem fundamento de validade nas Constituições Federal e Estadual. O magistrado destaca ainda que o teor central da ação já havia sido discutido no Supremo Tribunal Federal (STF) e em Estados como São Paulo e Santa Catarina.

“A emenda não era apenas uma atitude passiva dos vereadores em requerer simplesmente os documentos e ficar aguardando. Foram realizadas diligências pessoais em locais da administração pública criando vários problemas”, avaliou, na ocasião.

No caso de Juiz de Fora, a Lei Orgânica é clara ao dispor que compete, “privativamente”, à Câmara Municipal a atribuição de “fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo, incluídos os da Administração indireta”. Ou seja, o texto coloca o papel fiscalizatório como função do colegiado do Poder Legislativo e não do vereador, de forma individual, como defendido nas decisões judiciais anteriormente apresentadas.

STF já julgou inconstitucionais propostas similares

Os questionamentos a tais tipos de proposições não são novidades. Em abril de 2004, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3046) ajuizada pelo então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). Na ocasião, o STF declarou inconstitucional a Lei estadual 10.869/01 promulgada pela Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que regula o poder de investigação dos deputados estaduais. A proposição feita à época era bastante similar à colocada para discussão, agora, na Câmara Municipal de Juiz de Fora.

À época, o Governo de São Paulo alegou que a lei dava livre acesso a repartições públicas estaduais aos deputados, “além de cometer ao deputado, isoladamente, funções que são constitucionalmente conferidas ao Legislativo, atribui-lhe excessiva liberdade investigatória, transformando-o em detetive em busca de indícios de supostas ou imaginárias irregularidades”.

Sob esta ótica, o Governo de São Paulo apresentou entendimento de que a legislação viola princípios constitucionais da independência e harmonia dos Poderes e que versa sobre “o poder de fiscalização dos Poderes Legislativos”.

Ministro do STF e relator da ADI à época, Sepúlveda Pertence considerou que os argumentos do Estado de São Paulo “demonstram com precisão que às Casas do Poder Legislativo – e, assim, no Estado membro, exclusivamente à Assembleia Legislativa -, e às respectivas Comissões, é que se conferiu o poder de fiscalização da administração direta ou indireta do Poder Executivo. É poder outorgado, em qualquer hipótese, aos órgãos colegiados, totais ou parciais, da Câmara respectiva, nunca aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação ou presentação de sua Casa ou Comissão”.

“A evidência de que a lei questionada visou converter cada integrante da Assembleia Legislativa em fiscal solitário e independente da Administração Pública embarga a interpretação conforme (a Constituição), que encontra o limite de sua utilização no raio das possibilidades de se extrair do texto uma significação normativa harmônica com a Constituição”, disse Pertence, na ocasião. Ou seja, no entendimento apresentado à época, o papel fiscalizatório cabe ao Poder Legislativo, por meio de ferramentas parlamentares disponíveis às casas.

Lei Orgânica é legislação maior do Município

Os projetos de emenda à Lei Orgânica Municipal destinam-se a modificar ou suprimir dispositivos daquela que é considerada a “lei maior” do município, assemelhando-se, guardadas as necessárias proporções, às constituições estaduais e federais.

Para a sua aprovação, ela precisa ser debatida em dois turnos, com intervalo de dez dias entre as duas votações. É necessário o apoio de dois terços da casa. No caso da atual configuração da Câmara, que tem 19 vereadores, a maioria qualificada se dá com um número mínimo de 13 votos.

O próprio regimento da Câmara afirma que os projetos de emenda não serão objetos de deliberação quando, entre outras disposições, “abolir a autonomia do Município”, o que, de certa forma, a proposta pode sugerir.

Durante a tramitação da proposição, também deverá ser montada uma comissão especial, que terá o prazo de 15 dias úteis para emitir parecer sobre o dispositivo. Findado este prazo, a matéria será colocada em votação. “Não estando concluído o parecer no prazo regimental, o presidente (da Câmara) nomeará um relator para exarar parecer, no prazo de cinco dias úteis”, diz o regimento interno do Poder Legislativo.

Caso aprovada, a Emenda à Lei Orgânica Municipal será promulgada pela Mesa Diretora no prazo de cinco dias úteis. Assim, não passa pelo crivo do Poder Executivo, que não tem, assim, a prerrogativa de veto.

Parlamentares defendem prerrogativa de supervisionar uso de imóveis e bens de consumo

Na justificativa do projeto de lei, os dez vereadores signatários defendem que a proposta visa garantir mais condições aos vereadores para a consecução do disposto no inciso XVI do art. 27 da Lei Orgânica Municipal. Exatamente o que diz que compete, “privativamente”, à Câmara a atribuição de “fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo”. “O campo de atuação dos vereadores na fiscalização dos recursos públicos pode contemplar uma série de atividade e áreas distintas, dentre essas avaliar permanentemente a gestão e as ações do Prefeito”, dizem os parlamentares.

Neste sentido, os vereadores afirmam que para fiscalizar a utilização de bens móveis e bens de consumo, em algumas ocasiões, precisam “ir diretamente nas repartições públicas para verificar a correta utilização dos bens públicos, denunciando seu eventual uso para fins particulares, verificando a existência física dos bens, isto é, se os materiais adquiridos são de fato entregues e existem, bem como se suas características correspondem ao que foi contratado.”

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