Professor da USP detalha novas abordagens ao golpe de 64
Especializado no período do Brasil Republicano, com ênfase no estudo do regime militar, Marcos Napolitano inaugurou pós-graduação da UFJF
Na última quarta-feira (3), os programas de Pós-Graduação em História e em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) foram inaugurados com uma aula ministrada pelo professor Marcos Napolitano, que leciona História do Brasil Independente e orienta o Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP).
O tema da palestra, organizada pelo Instituto de Ciências Sociais (ICH) da UFJF, foi “O Golpe de 1964 e o Campo da História Política: Novas Abordagens”. Napolitano detalhou à Tribuna quais seriam estas novas abordagens e esclareceu relações entre o golpe militar sofrido pelo Brasil 60 anos atrás e a atualidade, além da importância da cidade de Juiz de Fora, de onde partiram as tropas, no processo de produzir reparações com impacto nacional.
Tribuna: Quais são as “novas abordagens” do golpe de 64, o tema da aula inaugural na UFJF?
Marcos Napolitano: Acho que há três grandes abordagens que podem ampliar o conhecimento historiográfico sobre o golpe. A primeira é compreender o golpe como um processo multifacetado, composto por vários eventos e atores que ora se articulam, ora entram em choque. No meu livro “1964-História do Regime Militar”, de 2014, defendo que não podemos analisar o golpe somente a partir – e como causa – da rebelião militar de 31 de março, mas analisar em detalhe o processo posterior, que inclui o golpe no parlamento em 2 de abril, com a decretação da vacância da Presidência da República e o processo de escolha do novo general-presidente, já sob o tacão do Ato Institucional de 9 de abril. Mas, além desta abordagem, é preciso levar em conta o papel da memória política que orientou aqueles atores a tomarem decisões – ou, no caso do presidente João Goulart, a não tomar a decisão de resistir. A experiência de rebeliões militares e golpes passados (1954, 1955, 1961), talvez tenha influenciado estes atores a pensar que aquela conjuntura seria passageira e tudo voltaria ao normal, sob o ponto de vista político-eleitoral. Até alguns golpistas embarcaram nessa visão. Mas acho que havia um grupo conspirador mais bem articulado – alta oficialidade, elites empresariais ligadas ao IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) – que já tinha um projeto de permanência no poder de longo prazo, para realizar uma reforma profunda no Estado e na política brasileira.
“A primeira abordagem é compreender o golpe como um processo multifacetado, composto por vários eventos e atores que ora se articulam, ora entram em choque.”
Tribuna: Ainda podem existir reflexos do golpe em uma escala local, como no caso das tropas terem partido de Juiz de Fora?
Napolitano: Um dos temas que a historiografia política do golpe de 1964 deve prestar mais atenção são as dimensões locais deste evento. Já há muitos trabalhos que focalizam a escala regional do golpe. No caso de Juiz de Fora, a cidade foi o epicentro da primeira ação de rebelião militar contra o Governo constitucional e que, em certa medida, refletia uma articulação regional em torno do governador Magalhães Pinto. Quanto aos reflexos atuais na cidade, não saberia dizer. De todo modo, acho que Juiz de Fora, se compararmos com outras cidades e regiões no quadro brasileiro atual, não pode ser caracterizada como um reduto destacado de saudosos do golpe de 1964 ou da extrema direita. Acho que os trabalhos da Comissão da Verdade local e da própria UFJF são exemplos de reparação simbólica em escala local, com impactos nacionais, dada a importância histórica da cidade no contexto de 1964.
Tribuna: Como a história explica que uma parcela da população negue que 1964 se tratou de um golpe, até mesmo tendo vivido aquela época?
Napolitano: O fato de viver uma época não significa que a pessoa conheça o processo histórico de maneira crítica. Isso vale para 1964 ou para qualquer outro evento. Por exemplo, eu vivi intensamente, até sob o ponto de vista político, os anos 1980 e 1990, mas meus alunos que pesquisam o período me mostram aspectos que eu não prestei atenção, que eu não conhecia ou que minha memória tratou de maneira parcial. Conhecer a história de maneira crítica e profissional é se dedicar a uma pesquisa que entrecruza fontes diversas, incluindo as memórias, muitas vezes conflitivas, dos que viveram a época. Dito isto, acho que no começo dos anos 2000, a extrema direita brasileira se rearticulou, angariou influencers diversos e conseguiu ocupar o espaço público e as redes sociais, questionando uma memória crítica da ditadura, até então dominante no debate público e no sistema escolar. O problema é que esta memória da extrema direita está marcada por um revisionismo ideológico, quando não por um negacionismo puro e simples, que desconsidera o caráter golpista de 1964, o caráter autoritário do regime e a existência de um terrorismo de Estado sistemático. Esse revisionismo se explica pelas disputas atuais da política brasileira e pela existência de uma cultura política autoritária ainda muito forte entre nós.
“Os trabalhos da Comissão da Verdade local e da própria UFJF são exemplos de reparação simbólica em escala local, com impactos nacionais, dada a importância histórica da cidade no contexto de 1964.”
Tribuna: É possível, ou até mesmo necessário, realizar comparações entre o golpe de 1964 e os atos do dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, do ponto de vista histórico?
Napolitano: Em parte, sim. O 8 de janeiro foi uma tentativa de um golpe de Estado da extrema direita, marcado não por uma rebelião militar, mas por uma rebelião civil que deveria causar um caos no sistema político. Mas, ao contrário de 1964, os golpistas não tiveram articulação suficiente com a cúpula das Forças Armadas. Apesar de contar com muitos simpatizantes na tropa, não tiveram apoio da cúpula do sistema político-parlamentar e não tiveram apoio de uma potência estrangeira, tendo em vista que o apoio norte-americano em 1964 foi determinante para o sucesso do golpe. Além disso, eram liderados por um conjunto de políticos aventureiros, a começar pelo seu líder máximo. Nos termos de Maquiavel, poderíamos dizer que faltou virtù aos golpistas, mas sobrou fortuna à democracia brasileira, além da competência política dos que a defenderam no 8 de janeiro, diga-se. Mas não convém, à democracia, abusar da sorte, pois os aventureiros também podem aprender com seus erros.