Lugares que serviram à ditadura militar em Juiz de Fora
De acordo com a Comissão Municipal da Verdade, pelo menos seis espaços guardam memórias sensíveis do período na cidade
Na madrugada do dia 31 de março, em 1964, sob comando do general Olympio Mourão Filho, uma tropa saiu de Juiz de Fora, rumo ao Rio de Janeiro, com o objetivo de depor o governo do então presidente João Goulart. Esse episódio ficou marcado por, então, dar início à ditadura militar brasileira, que perdurou no Brasil por 21 anos. Mas a cidade mineira é protagonista neste período não só por ter sido palco desse começo. Juiz de Fora, na época, era sede da 4ª Região Militar, antes de ser transferida para a capital do estado, Belo Horizonte. Abrigando, em razão disso, a Auditoria da Justiça Militar, todos os processos que correspondiam aos estados de Minas Gerais, Goiás e no Distrito Federal, passavam por aqui. É por isso que pessoas de diversos estados, durante a ditadura, consideradas uma ameaça aos costumes e ao regime, vieram à cidade ou para participar de uma audiência ou para cumprir pena. Esses dados são todos reforçados através dos relatos às comissões nacional, estadual e municipal da verdade.
Esses dados das comissões, ainda dão conta de que, depois de Belo Horizonte, Juiz de Fora foi o município mineiro com mais unidades utilizadas a serviço da repressão do estado, inclusive com indícios de violação dos direitos humanos e formas de tortura. De acordo com a Comissão Municipal da Verdade (CMV), por meio do livro “Memórias da repressão: Relatório da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora”, seis espaços na cidade, principalmente, guardam memórias sensíveis do período na cidade, por onde, de alguma forma, presos políticos de todo o Brasil passaram. Conheça alguns desses espaços.
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Auditoria da Justiça Militar
A Auditoria da Justiça Militar, principalmente durante a ditadura, se localizava nas proximidades da Praça Antônio Carlos. Aquela área é conhecida como Praça do Canhão. De acordo ainda com o livro “Memórias da repressão”, disponível no site da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), por lá passaram centenas de militares que foram presos ou perseguido pelo regime. “Muitos eram denunciados porque integravam sindicatos ou o movimento estudantil, participavam da publicação ou circulação de algum jornal alternativo, liam obras consideradas ‘comunistas’ e defendiam o pensamento marxista ou teriam integrado movimentos de guerrilha urbana”. O livro ainda reforça que, com base no que foi apresentado no Volume I do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, é possível afirmar que “a unidade foi utilizada pelo sistema repressivo como um braço de apoio para que os objetivos da ditadura não fossem desviados”.
Delegacia da Policia Civil
A Delegacia da Polícia Civil, na época, era localizada na Rua Batista de Oliveira, onde, hoje, funciona o Conservatório Estadual De Música Haidée França Americano. No livro, esclarece-se que, de acordo com a CMV, não é possível obter relatos contundentes de que, de fato, no espaço, houve tortura. No entanto, é apresentado um relato em que o ouvido afirma ser difícil, ainda na época, passar pelo local. “Lá na cadeia nós fomos fichados como criminosos, com identidade, com fotografia e tudo, porque era um esquema de humilhação. A algema e a fixação das pessoas como criminosos fazia parte do esquema de humilhação e fazia parte também do esquema de humilhação a nudez.” O homem, em depoimento, disse ainda que o órgão responsável pelas prisões era o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), atrelado à Delegacia. No entanto, em seguida, ele foi extinto da cidade.
Penitenciária de Linhares
A Penitenciária de Linhares foi criada em 1965 e inaugurada em 1966. Em 1967, passou a receber os presos políticos da ditadura militar. Isso aconteceu, como menciona “Memórias da repressão”, sobretudo a partir da transferência de 16 militares do Movimento Nacional Revolucionário (MNR), que atuava na guerrilha da Serra do Caparaó. Com o AI-5, em 1968, a Penitenciaria se tornou, de fato, um presídio político, toda destinada a receber acusados pelo regime. Ela é uma das principais lembranças daqueles que cumpriram pena em Juiz de Fora, durante a ditadura. E o livro, com base na CMV, reforça: “A extensa citação de partes do regulamento da Penitenciária de Linhares, o relato do repúdio dos presos ao tratamento que recebiam no estabelecimento, assim como a descrição das punições registradas nos livros da 4ª CJM, são um contraponto à memória que nega ou minimiza os sofrimentos e as torturas praticadas em Juiz de Fora. Entre os que prestaram depoimento à CMV-JF, vários se referiram a Linhares”.
Quartel General
Foi no Quartel General (QG), localizado na Rua Mariano Procópio, que hoje abriga a 4ª Brigada de Infantaria Motorizada, batizada de Brigada 31 de Março, que general Mourão arquitetou boa parte do golpe. O espaço funcionava como abrigo para boa parte dos presos políticos que passavam por Juiz de Fora, seja eles aguardando julgamento, ou para participar de audiência na Auditoria, ou enquanto aguarda transferência para outra unidade, inclusive servindo para interrogatório. De acordo com a CMV, o QG, junto com a Penitenciária de Linhares, foi um dos lugares mais mencionados nos depoimentos. Próximo ao QG, funcionava também a 4ª Companhia de Polícia do Exército (PE) – tudo em conjunto com o espaço do Museu Mariano Procópio.
10º Regimento de Infantaria (Batalhão de Infantaria)
O 10º Regimento de Infantaria (Batalhão de Infantaria), localizado no Bairro Fábrica, foi também utilizado como prisão temporária em casa de lotação do QG. Outras informações da CMV ainda dão conta de que o lugar foi utilizado como prisão de integrantes da Guerrilha do Caparó, “considerada o primeiro movimento mais sistêmico de resistência armada ao regime militar”, explica “Memórias da repressão”.
2º Batalhão de Infantaria da Policia Militar (2º BPM)
O 2º Batalhão da Polícia Militar funciona no Bairro Santa Terezinha. Ele é um dos lugares em que, de acordo com o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, houve violação dos direitos humanos no período da ditadura. O Batalhão servia, principalmente, para abrigar presos políticos enquanto os outros espaços estavam lotados, sobretudo no momento em que foi registrado um aumento das prisões “daqueles que eram considerados ‘agitadores’ ou ‘subversivos'”, informa o livro. Há informações ainda, dos que foram presos na época, que os militares faziam o possível parta que os presos políticos não ficassem juntos, sendo espalhados pelas unidades ou transferidos de tempos em tempos.
Memória da ditadura militar
Além desses lugares, acredita-se que outros também foram utilizados a serviço da ditadura militar em Juiz de Fora, de alguma forma, apesar de não haver comprovações robustas sobre isso. Outro fato é que casas de civis, em Juiz de Fora, podem ter sido usadas de aparelho, ou seja, lugares onde as resistências se encontravam.
O historiados Yussef Campos, juiz-forano que, atualmente, é professor na Universidade Federal de Goiás (UFG), fez um artigo em que se debruçava, exatamente, sobre os espaços de memórias sensíveis da ditadura militar em Juiz de Fora, junto com Deborah Neves, que também pesquisa o tema e participou do processo de patrimonialização do DOI-CODI. Com o nome de “Por uma proteção legal de lugares de memória sensível da ditadura militar em Juiz de Fora, Brasil (1964-1985)”, a proposta é apontar a importância do processo de tombamento desses lugares, como forma de apresentar à sociedade o que aconteceu nos espaços para que eles não caiam no esquecimento.
Yussef aponta que, desses seis lugares abordados, três são tombados: onde hoje é o Conservatório, o Quartel General e onde era a Auditoria. No entanto, no processo de tombamento, nenhum deles menciona o período da ditadura. São apensas consideradas características de outros momentos históricos da cidade, em que eles foram protagonistas de alguma forma, levando em conta, ainda, questões arquitetônicas.
O historiador chama esses espaços de “lugares de memórias sensíveis”. “Quando se fala em patrimonializar edificações como essas, (tem de lembrar que) as dores e os traumas ainda estão presentes. Ainda existem sobreviventes das torturas. Existem parentes de pessoas que foram torturadas e mortas. Por isso essa memória sensível. Mas isso não significa que deve haver esse apagamento: pelo contrário. Deve tratar essa memória de maneira ética e adequada, envolvendo as pessoas que sofreram direta e indiretamente o trauma”. Ele, no entanto, percebe uma recusa ao seguimento desse processo. “A questão do apelo à memória coletiva é um exercício para a não repetição”, finaliza.
A Tribuna entrou em contato com o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac) para saber se há a possibilidade de que as informações sobre a ditadura militar sejam incluídas nos processos de tombamento, se os outros três lugares têm processos de patrimonialização abertos e se há alguma atividade que envolve os espaços. Em nota, responderam: “No que diz respeito às alterações de decretos de tombamento, a Lei 10.777/2004 permite que o objeto de proteção seja ampliado e também que sejam reconhecidos outros elementos relevantes socialmente. A alteração pode ser protocolada por qualquer cidadão, mediante justificativa. O Comppac, até o presente momento, não recebeu solicitações neste sentido. Sobre os prédios citados que não são protegidos, o pedido de tombamento também pode ser desencadeado pela sociedade civil para, em seguida, ser avaliado pelo conselho.”